sábado, 23 de fevereiro de 2013

O quase sensacionalismo - Márcia Franz Amaral


Estado de Minas: 23/02/2013 

Incêndio na Boate Kiss, uma tragédia brasileira, teve ampla cobertura também da mídia internacional (GERMANO RORATTO/AGÊNCIA RBS - 27/1/13)
Incêndio na Boate Kiss, uma tragédia brasileira, teve ampla cobertura também da mídia internacional

Acontecimentos catastróficos, como o incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria (RS), ocorrido no final de janeiro, são um desafio para o jornalismo, que, muitas vezes,  em casos como aquele, ultrapassa os limites da boa cobertura e entra no terreno do sensacionalismo. A jornalista Márcia Franz Amaral, professora da pós-graduação em comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), reflete sobre quais são esses limites e sugere os cuidados que se deve ter para que não sejam ultrapassados.

Escrevo de Santa Maria (RS), cidade que foi foco da imprensa no final de janeiro, com a cobertura do incêndio que vitimou mais de duas centenas de jovens. Do centro desse acontecimento, prenhe de sentidos e sensacional em si, reflito sobre os limites do jornalismo na cobertura de tragédias. O que o jornalismo pode fazer no ápice de acontecimentos trágicos, senão relatar o trágico? E quando deixa de informar e passa a fazer sensacionalismo? Não me refiro a casos extremos, como foi o do programa Balanço geral, da Record que simulou, ao vivo, com gelo seco, o cenário do incêndio, enquanto chamava o repórter direto da cena da tragédia. Nem trato de iniciativas com o fim exclusivo de aumentar a audiência ou os índices de leitura, como foi o caso da revista Época, cuja capa sobre o incêndio foi escolhida pelos curtidores do Facebook.  Refiro-me a aspectos constitutivos do jornalismo informativo diário que dizem respeito às rotinas produtivas, à percepção do que é notícia e à narração de um acontecimento catastrófico.

O acompanhamento de um fato em tempo real exige muito esforço dos repórteres. As críticas exaustivas às coberturas deixam os jornalistas envolvidos perplexos. Mas é preciso perceber que as coberturas seguem rotinas e enquadramentos já estabelecidos culturalmente. Estudos anteriores sobre a cobertura de acontecimentos catastróficos nos levam a concluir que elas seguem alguns rituais.

Há uma lógica intrínseca ao jornalismo que o faz perseguir o urgente e organizar o que parece caótico. Disse a primeira linha do Diário Gaúcho (jornal popular da RBS) sobre o incêndio: ‘‘Uma faísca, o fogo se alastra pelo teto e a festa com cerca de 1,5 mil jovens termina em 233 mortes’’ (29/01/2013). As primeiras notícias dão sentido à realidade e buscam atestar que o incrível realmente aconteceu.

Quando um fato desse tipo vem à tona pelos meios jornalísticos, emerge primeiramente no tom do "ao vivo", do relato da sensação e da experiência imediata. As consequências das tragédias aparecem em primeiro lugar, em detrimento das causas. Certos discursos são interditados para que somente a singularidade tenha vez. Há, inicialmente, a preponderância da imagem sobre a análise, a personalização das vítimas, a fala dos testemunhos e a despersonalização na apuração das responsabilidades. Entra em ação um ethos consensual, o da solidariedade. Todos – jornalistas e população – constituem-se em vítimas virtuais e extravasam o sentimento de que qualquer um poderia estar lá. O mundo da política, das instituições e do poder público fica em segundo plano. Neste primeiro momento, toda a manifestação que revela inconformidade ou tensão é controlada para não tirar o foco do principal.

O enquadramento inicial da maioria das notícias dá visibilidade para as experiências e as emoções, mas não transcende o espetáculo e as histórias individuais. Os fatos singulares são exibidos exaustivamente em seus detalhes, numa tentativa de que haja maior compreensão do acontecimento. Flashes de âncoras famosos "direto do lugar da tragédia" ganham destaque, mesmo que não tenham informação alguma a acrescentar. Mantém-se o tom da gravidade e as informações, por um determinado tempo, são as mesmas e chegam à beira da fruição ou da catarse.

O recurso dos depoimentos dos testemunhos também é usual na cobertura de catástrofes. "Eu puxava os corpos. Enquanto puxava um, sentia alguém segurando minhas pernas" (Época, 04/02/2013). O trecho em si não pode ser considerado sensacionalista, afinal, trata-se do relato de uma experiência real. A principal especificidade do testemunho no jornalismo é o relato de uma vivência radical ou situação limite. Os testemunhos baseiam-se, sobretudo, na representação da sensação bruta, do concreto, do instrumental, e não operam com a explicação e o distanciamento dos fatos, como podemos perceber na frase inicial desta matéria de Zero Hora (29/01/2013): “Era o fim do mundo. A enfermeira Luciana Morales, 31 anos, não tem outra definição para o que viu quando chegou à emergência do hospital e (...)”. No jornalismo diário, o testemunho não se configura num relato acabado com fins de recuperação da memória de fatos históricos, como por vezes constatamos na literatura. Porém, as fontes testemunhais sozinhas não dão o sentido primeiro ao fato, até porque o relato de suas experiências individuais não é autoexplicativo. Elas compõem uma narrativa concebida pelo jornalismo.

‘‘Não é possível, não é possível, não é possível, não é possível’’ (Zero Hora, 28/01/2013). A função dos testemunhos é ressaltar o que há de mais humano ou desumano em tal acontecimento. É denunciar, de forma sempre parcial, a vivência de um evento radical ou a sua sobrevivência. O objetivo primeiro do testemunho é afirmar a realidade. Assim como as vítimas têm necessidade de narrar o que lhes aconteceu, cabe ao jornalismo tentar reconstruir a experiência traumática. O testemunho é, muitas vezes, um relato simultâneo ao acontecimento, com características efêmeras e fragmentadas, porém convocado a dar efeito de real ao discurso da notícia.

O testemunhador ascende à condição de fonte jornalística não pelos seus capitais (culturais, sociais, econômicos). Quem fala o faz a partir de sua experiência e não a partir de seu capital. O que torna alguém fonte nestas condições é justamente sua expropriação. Se é no testemunho que muitas vezes o jornalismo se humaniza, também é por intermédio dele que se pode espetacularizar ou descontextualizar um relato jornalístico.

As formas de narrar as tragédias não dizem respeito somente aos aspectos da notícia como mercadoria, mas também ao conceito mesmo de notícia. Adelmo Genro Filho, formado pela Universidade Federal de Santa Maria, autor do clássico livro O Segredo da pirâmide, consolidou uma arquitetura teórica para explicar as especificidades do conceito de notícia. A partir de categorias filosóficas (o singular, o particular e o universal), considera o jornalismo como uma forma de conhecimento cristalizada no singular, ao contrário da ciência, por exemplo, uma forma de conhecimento baseada no universal.

Numa notícia, são os aspectos singulares dos fatos que estão nas manchetes, nos títulos e no início do texto. O singular é a alma da notícia, é o menos generalizante, o que não se repete, o que é idêntico só a si mesmo, o novo, a realidade em movimento. É a partir do relato singular que a informação jornalística constrói o mundo público. Cada veículo elege um aspecto singular para enquadrar a notícia e necessita, com o amadurecimento da apuração, realizar a contextualização, ou seja, aprofundar os aspectos particulares, mostrar o que aquele fato tem em comum com outros e em que cadeia de acontecimentos ele se localiza.

Percebe-se que, passados os primeiros momentos da tragédia, o jornalismo busca o particular. Com a contextualização, as matérias geram conhecimento e mostram que a atividade jornalística pode ser exercita de forma ética e responsável. Uma reportagem em Zero Hora (03/02/2013) relaciona a negligência que levou ao incêndio na Boate Kiss a outros aspectos da cultura do brasileiro, como a falta de atitude em diversas ocasiões. Neste caso, está levantando particularidades ainda mais alargadas do fato inicial.

Quando a cobertura jornalística retarda na apuração dos fatos, a particularização não se realiza imediatamente e as notícias ficam circunscritas ao singular e, portanto, aos aspectos sensacionais. Ou seja, os aspectos dramáticos são próprios de fatos como esses, mas não podem presidir a cobertura por demasiado tempo, por mais complexo que seja seu aprofundamento.

Assim, não é o uso de elementos dramáticos, constitutivos de tais tragédias que provoca os excessos nas coberturas das tragédias, mas sim a cristalização, no discurso, da gravidade da experiência por tempo excessivo. Os problemas da cobertura de acontecimentos catastróficos não estão no relato da emoção, mas na dimensão do seu entorno, na falta das particularidades que a cercam e na ausência do contexto.

Sim, o jornalismo baseia-se na imediaticidade e na aparência dos fatos. E possibilita que o mundo se enxergue a partir do singular. Por isso, as primeiras notícias de uma catástrofe são como são. Os fatos não emergem como íntegros e sim de forma atomizada e são reconstruídos pelo jornalismo. Cabe também ao jornalismo revelar o que há em comum entre a tragédia noticiada e as demais e mostrar as mediações sociais envolvidas. O singular precisa remeter para um contexto particular com significações universais. A notícia deve conter uma relação harmônica entre o singular e o particular para que se torne uma apreensão crítica da realidade.

Quando o jornalismo se circunscreve ao singular, borra suas fronteiras, deixa de ser uma forma de conhecimento sobre a atualidade e chega à beira do entretenimento. É da ordem da cobertura jornalística de qualidade ultrapassar a imediaticidade do fato e transcender para as suas particularidades.

Enfim, o jornalismo extrai sua força do singular, mas não pode se resumir no seu relato. Se é a informação mais singular que vitaliza a notícia, o seu entorno é que lhe dá dignidade e perpetua acontecimentos, como a tragédia em Santa Maria, na memória social.

Márcia Franz Amaral é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria, pós-doutora pela Universitat Pompeu Fabra (Espanha), líder do grupo de pesquisa Estudos de Jornalismo (CNPq), pesquisadora do CNPq, autora do livro Jornalismo popular. E-mail:  marciafranz.amaral@gmail.com

ENTREVISTA/ANA TONI » Para que servem as ONGs?


Marcelo Freitas

Estado de Minas: 23/02/2013 
 (GREENPEACE/DIVULGAÇÃO 
)

Para a economista Ana Toni, esta é uma pergunta, no Brasil, ainda sem resposta. Ela considera fundamental ter uma sociedade civil organizada, mas entende que a sociedade brasileira, como um todo, ainda não tem uma posição a esse respeito. Para ela, a definição de um marco legal para a atuação das Organizações não governamentais (ONGs) é importante para que possam ser definidos,  por exemplo, canais de financiamento e papéis. Ana Toni é presidente do Conselho Internacional da ONG ambientalista Greenpeace, que tem sede em Londres e 26 escritórios espalhados pelo mundo, inclusive no Brasil, onde lidera campanha pelo desmatamento zero. Ana Toni se mostra pessimista em relação às condições ambientais do planeta nos próximos anos, acha que o governo brasileiro não considera a preservação do meio ambiente como prioridade enquanto ação de Estado e defende que o Brasil passe a vislumbrar a ideia de também ter ONGs, como o Greenpeace, de alcance global.

ONG inglesa Anistia Internacional faz protesto contra a manutenção da prisão americana de Guantánamo, em Cuba. Para Ana Toni, Brasil deveria pensar na ideia de também ter ONGs de alcance global (GARI CAMERON/REUTERS -11/1/2012
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ONG inglesa Anistia Internacional faz protesto contra a manutenção da prisão americana de Guantánamo, em Cuba. Para Ana Toni, Brasil deveria pensar na ideia de também ter ONGs de alcance global


Há, no mundo, várias ONGs que atuam de forma global, em vários países, inclusive no Brasil. Mas não temos nenhuma ONG brasileira com atuação internacional. A que a senhora atribui isso?

Um dos grandes motivos, primeiro, é o fato de o Brasil ainda ser um país que tem muitos problemas e que demanda muito da sociedade civil. Então, há uma tendência muito grande de tentar encontrar, primeiro, soluções para questões que estão dentro do próprio Brasil. O segundo problema é a falta de recursos, de pessoas que queiram financiar ONGs brasileiras que façam esse trabalho fora. O terceiro é que, como o Brasil sofreu muito com essa história de pessoas de fora virem para cá, as ONGs brasileiras aprenderam a trabalhar em parceria com as de fora de uma maneira muito respeitosa, o que é muito positivo. Mas, basicamente, o maior problema é que nós continuamos a olhar muito para o nosso próprio umbigo. Esse é o discurso que ainda prevalece e que faz com que a gente não consiga fazer paralelos, por exemplo, com o que acontece na África do Sul, ou na Índia, ou na China.

As ONGs brasileiras teriam, então, um discurso negativo?


Não acho que seja um discurso negativo. Acho que é um discurso acanhado, de tentar ver mais o que lá de fora a gente pode aprender, sendo que a gente tem aqui experiências muito importantes que poderiam ser levadas para fora, mas não são. É um discurso voltado ainda muito para o próprio umbigo, o que é uma pena.

Faltam projetos para as ONGs brasileiras?


As ONGs brasileiras talvez sejam uma das mais fortes do mundo. O Brasil é um país que produziu uma sociedade civil muito aguerrida, muito articulada. O Fórum Social Mundial é uma prova disso. Nossa sociedade civil é muito inovadora e absolutamente politizada. E isso é histórico no Brasil. Agora, acho que, com a entrada de um governo mais à esquerda (governo Lula), a gente está numa entressafra. Esse movimento forte da sociedade civil nos anos 60, 70, 80 e 90 meio que desarticulou um pouco essa mobilização, que era muito ligada a uma crítica ao governo. Com a vitória de Lula ocorreram alguns fatos. O primeiro é que muitos dos quadros da sociedade civil vão trabalhar para o governo. Acho que essa foi uma primeira perda; o segundo fato é que é muito mais difícil você ter uma sociedade civil forte em um governo que está fazendo muito do que sempre você pediu que fosse feito – foco na pobreza, foco nos direitos dos quilombolas, negros.

Qual seria o papel da sociedade civil em um governo mais à esquerda?


Acho que demorou o primeiro mandato inteiro do governo Lula e parte do segundo para que a sociedade civil entendesse qual é o seu papel, se divorciasse do governo e entendesse a necessidade de as ONGs serem independentes. Um grupo delas se manteve independente. Algumas fizeram parceria com o governo, mas sempre mantendo uma certa distância.  Nesse cenário, ocorreu outra mudança importante. No momento em que ocorreu uma consolidação da democracia brasileira, as financiadoras, os governos e as fundações internacionais que financiavam estas ONGs perceberam que o Brasil estava bem, econômica e democraticamente, e entenderam que havia outras prioridades, como África e Ásia. Com isso, pararam de financiar as ONGs brasileiras. Então, eu diria que a gente está em uma certa entressafra.

Como a senhora definiria, hoje, a relação das ONGs com o governo federal?

Acho que a relação com o governo hoje é mais estruturada. A sociedade civil está fragilizada. Vou usar o mesmo termo que usei para a área internacional. Não faltam projetos. Acho que falta um entendimento de que papel, não só a sociedade civil pensa que ela tem quer ter, mas também o que a sociedade brasileira quer que a sociedade civil tenha. A sociedade brasileira ainda não definiu se ela acha importante ter, como em outros países, uma sociedade civil organizada. Aqui, nós temos o setor privado, o setor  governamental, mas o papel da sociedade civil para a sociedade brasileira ainda é um ponto de interrogação. Se isso estivesse claro, eu, você e muitos outros poríamos a mão no bolso e financiaríamos projetos, como financiam o Greenpeace, como financiam o Ibase, a Anistia Internacional. Nos ainda não fazemos isso. Não temos um marco legal que faça com que o financiamento chegue à sociedade civil, nem por parte do governo, nem das empresas. Não há incentivo fiscal para empresas, para pessoas físicas fazerem suas doações. Por isso, nós, como sociedade brasileira, temos que tomar essa decisão. Este pilar – a sociedade civil – é importante para a consolidação de democracia? Se acreditamos nisso, vamos lutar pela regulamentação das ONGs, vamos financiá-las por nossos próprios bolsos. Volto a repetir: não acho que seja um problema da sociedade civil. Acho que é um problema da nossa sociedade como um todo, que ainda não decidiu que papel a gente quer, espera e precisa que a sociedade civil cumpra no processo de consolidação da nossa democracia.

E qual é esse papel?

Cabe o papel de monitoramento de políticas públicas, de observação do setor privado, de influência, de pressão. A sociedade civil tem esse papel fundamental, que é o de pressionar o governo, as empresas, de acompanhar para ver se estão cumprindo a lei e também de investir na inovação social.

Nos últimos meses, várias ONGs estiveram envolvidas em denúncias de mau uso de recursos públicos. Isso não compromete a imagem desse setor e dificulta o processo de reconhecimento de seu valor pela sociedade?

É muito estranho porque, quando a gente vê casos de corrupção quase que diariamente na mídia, a gente lê que ministro x, y ou z fez isso, fez aquilo, desviou dinheiro público. Quando é o setor privado, também. É a empresa x, y ou z. Mas, quando é a sociedade civil, são ONGs, no genérico. Não é a ONG x, y ou z ou a liderança x, y ou z. É como se todas as ONGs fossem corruptas. Estamos passando por uma criminalização absurda das ONGs. Não estou falando como se não houvesse problemas. É lógico que há, assim como há no setor privado e no setor governamental. Agora, achar que todas as ONGs têm problemas, que todas as ONGs se aproveitam do dinheiro público, é errado. Esse é o debate que falta no Brasil. Queremos uma organização do tipo Contas Abertas ou SOS Mata Atlântica? Que ONGs achamos sérias? É preciso separar o joio do trigo. Se existe um Tribunal de Contas para monitorar o governo, por que não pode monitorar também as ONGs? As boas ONGs querem ser fiscalizadas, querem ser auditadas. Mas não há nem quem as audite. Acho que a mídia não deveria usar o genérico, deveria dar nome aos bois e criminalizar o que tem que ser criminalizado. É preciso muito cuidado, porque a gente enfraquece a democracia quando faz acusações genéricas.

Na época da Rio+20, a senhora e o Greenpeace manifestaram-se como extremamente pessimistas em relação aos resultados do evento. Mudou algo nessa avaliação daquele momento para hoje?

Se mudou foi para pior. Aumentou o pessimismo. Nós tivemos aquela discussão toda sobre o Código Florestal, depois a dos royalties do petróleo, que acabou com a destinação de recursos para o Fundo do Clima. Sou a favor de colocar recursos para a educação, mas eliminar os recursos que iam para o Fundo do Clima, do Ministério do Meio Ambiente, é simbólico do que aconteceu. Acho que o governo da Dilma – e não é por falta de luta do Ministério do Meio Ambiente, da ministra Izabella Teixeira – não priorizou a área ambiental. Não resta dúvida de que esta não é uma prioridade. Ao contrário. Dentro do governo tem muita gente boa que está tentando, realmente, fazer o seu papel. Mas acho que há um problema de liderança da própria presidente. E a área ambiental, infelizmente, não é uma prioridade. É uma pena porque acho que ela está perdendo uma oportunidade incrível de colocar o Brasil em uma posição de liderança em uma área que tem um vácuo internacional imenso. Infelizmente, neste governo, o Brasil está 10 milhões de anos atrás.

A senhora acredita numa reversão desse quadro?


Gostaria de pensar, mas eu não vejo nenhum movimento, nenhuma liderança que mostre que algum país ou algum grupo de países está preparado para pensar nessa situação. Logicamente que alguma esperança existe. No segundo mandato do presidente Obama, esperamos que ele queira deixar um legado nessa área. No seu discurso, ele falou sobre isso. Mesmo no discurso do dia em que soube que ganhou a eleição, ele já falou sobre mudança climática. Espero que ali haja um resto de esperança.

É possível conciliar o modelo de civilização ocidental com a preservação do meio ambiente?

Para mim, tanto a economia quanto o crescimento econômico são o meio, não o fim. São o meio de atingir o bem-estar individual, o bem estar-social. Porém, acho que estamos chegando a um ponto em que o desejo do crescimento econômico virou um fim, não um meio. É preciso, realmente, repensar esse nosso modelo, como se só o crescimento fosse possível, e pensar outras maneiras de organizar a economia. Não é o caso de alguns países ainda bastante pobres, como os da África, e algumas partes do Brasil, em que o crescimento econômico é absolutamente necessário para o bem-estar de uma população a nível médio. Mas passa-se de um momento em que o crescimento econômico não se torna mais sinal de bem-estar, e sim algo que causa mais poluição, mais mudança climática. Ter um crescimento econômico para todo mundo e a qualquer custo é absolutamente errado. Hoje em dia, a gente tem que olhar o crescimento econômico onde ele é necessário; onde não cabe, é perigoso, é negativo. Nesse sentido, é possível, sim, conciliar o crescimento econômico com a questão da sustentabilidade, mas apenas em alguns países. Em outros, isso não mais é possível.

Onde não é mais possível?

Por exemplo, em muitos países da Europa e nos Estados Unidos. Aí vem a pergunta: se não vai haver crescimento econômico, a gente vai ter desemprego? Temos que repensar o que é o emprego. O problema é o emprego ou o tamanho do salário? A gente está em um bom momento para discutir isso e há milhões de economistas, tanto lá fora quanto aqui no Brasil, que estão repensando a economia.

No Brasil, estamos em que patamar em relação a precisar ou não de crescimento?

O Brasil é um país interessante, porque é um continente. Você tem partes do Brasil que estão lá embaixo, onde precisamos muito de crescimento; em outras, não. O problema de Brasil, Índia e China não é discutir se precisa ou não precisa não de crescimento.  E sim que modelo econômico a gente vai ter. Nesse ponto, não estamos bem. O Brasil não está colocando quase nenhum esforço na mitigação das emissões de carbono. E poderia estar investindo muito mais nisso. E a desculpa de sempre é que a nossa matriz energética é uma das mais limpas do mundo por causa das hidrelétricas. É verdade, mas a gente tem todo o problema da energia. E não é só porque não choveu. O problema é muito maior. Nós estamos criando, ainda bem, uma classe social que começa a consumir um pouco mais, mas nós não temos, ainda, uma matriz energética limpa que forneça a energia necessária para que as classes C e D, que estão crescendo, possam consumir da mesma maneira que as outras. Estamos usando mais termelétricas. A gente vai ter que repensar nossa matriz econômica e, logicamente, a energética também.

Estamos pensando nisso?

Não. Não estamos, absolutamente, de jeito nenhum. O investimento de longo prazo nas energias alternativas eólica e solar, áreas em que o Brasil tem um potencial absurdo, é pouquíssimo perto do que é necessário, perto do que podemos e em comparação com o que outros países estão fazendo. Estamos anos-luz atrás nessa história. Um banco como o BNDES, que deveria estar liderando o investimento nas energias alternativas, não faz isso. Continua financiando a usina nuclear de Angra. Vai financiar Belo Monte, uma matriz que é furada. A ênfase no futuro é o que a China está fazendo. Está construindo mais parques eólicos do que qualquer país do mundo.

Mas ela tem suas usinas de carvão, que são altamente poluentes.

Ela mantém suas usinas termelétricas baseadas em carvão, que são as mais sujas do mundo, e, ao mesmo tempo, é o país que mais investe em energias alternativas. Ela está fazendo ambos, porque sabe que vai ser inevitável passar para um patamar de maior sustentabilidade daqui a algum tempo e está querendo aproveitar, até o fechar das portas, a energia suja. Está investindo em ambos os modelos. Mas pelo menos está investindo em algo novo. O Brasil, que tem um potencial imenso, continua atrelado a um modelo de matriz energética ainda bem que limpa, mas com milhões de outros problemas que a gente já conhece, como inundação de áreas indígenas.

O que é ser presidente de uma organização como o Greenpeace?


É um cargo de uma honra terrível. Tenho muito orgulho de eles terem me convidado e de eu estar nessa posição de presidente do Conselho Internacional do Greenpeace. E é uma trabalheira do cão. Muito me honra, mas também dá muito trabalho. Nós temos escritórios em 26 regiões do mundo. É uma organização imensa. São mais de quatro milhões de pessoas que, mensalmente, financiam o Greenpeace com doações individuais. O Greenpeace não recebe nenhum recurso nem de empresa nem de governos. É só de indivíduos. Então, coordenar isso tudo, pensar essa estrutura e em uma organização muito ativista, muito guerreira, você pode imaginar que é muito trabalho. É preciso ter muita certeza de cada passo que você dá porque a única coisa que o Greenpeace tem é o seu nome. Então, se nós fazemos um relatório que é errado, se vamos fazer uma crítica que não é verdadeira a uma empresa, ou criticamos um governo de uma maneira errônea, isso acaba com o Greenpeace. Então, estar nesse papel de presidente do Conselho Internacional e ajudar os executivos do Greenpeace a defender nossa visão da maneira mais independente possível é um papel muito importante. A gente aprende todos os dias.

É viável o desmatamento zero?

Estou bastante otimista. O Greenpeace vem crescendo bastante em termos da sua capacidade de mobilização. O escritório brasileiro é um dos que mais parcerias faz com outros movimentos, de mulheres, de pequenos agricultores, dos movimentos de base dos consumidores. O desmatamento zero não é uma campanha do Greenpeace. É uma campanha de todos esses movimentos. E eu acredito que, com a mobilização de todos esses movimentos, talvez a gente chegue lá. Mesmo que isso aconteça, sabemos que a batalha estaria só começando, porque, depois que a proposta dá entrada no Congresso, tem a discussão e aprovação. A gente sabe que os ruralistas, neste atual Congresso, estão absolutamente poderosos, mas a gente tem uma mensagem importantíssima que é a de dizer que nós temos milhões de hectares de terras que já foram desmatadas e estão aí não sendo aproveitadas. Então, o desmatamento zero é algo muito importante e a gente pode, sim, consegui-lo.


Uma revolução em ritmo lento - Reinaldo Bulgarelli


Estado de Minas: 23/02/2013 
Caminhada das mulheres em um cenário de maior igualdade no mundo empresarial é lenta. Mas avanços já foram alcançados. Importante é que 
a própria mulher se conscientize disso e também busque seu espaço ( JOSÉ VARELLA/CB/d.a PRESS - 3/5/04
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Caminhada das mulheres em um cenário de maior igualdade no mundo empresarial é lenta. Mas avanços já foram alcançados. Importante é que a própria mulher se conscientize disso e também busque seu espaço


Há muito as mulheres deixaram de ser apenas as donas de casa. Elas já fazem parte do cotidiano das faculdades e do mercado de trabalho. Em muitas áreas, já são até maioria em relação aos homens. Porém, no mundo do trabalho, elas enfrentam barreiras intransponíveis de ascensão dentro das empresas. Prova de que o preconceito ainda existe e demandará muito tempo para ser extinto, como mostra artigo do educador Reinaldo Bulgarelli. Para ele, a aproximação do Dia Internacional da Mulher – 8 de março – é um bom momento para que homens e mulheres reflitam sobre esse cenário e também façam opções, que poderão fazer com que esse processo seja mais lento ou mais ágil.

Falar sobre a questão da mulher no mundo empresarial é falar também sobre a questão dos homens e também das próprias empresas, seus propósitos, desafios e a forma como estão atuando no campo dos direitos humanos, dos negócios e de seus resultados. Não é possível pinçar o tema da mulher deste contexto, mesmo porque ele revela as escolhas de nosso tempo e lugar; a maneira como as empresas expressam sua identidade (missão, visão, valores) na prática e a forma como agem diante das ideologias. Muitas apenas reproduzem, sem crítica alguma, essas ideologias e algumas a enfrentam, assumindo até mesmo uma postura proativa de mobilização interna ou externa a favor da equidade de gênero.

Sim, é impossível falar da questão da mulher sem falar no machismo. Há quem diga que é importante falar também no capitalismo, mundo globalizado, sociedade pós-industrial, mas isso poderia tornar este artigo pouco atraente para aqueles que gostariam de apreciar uma análise mais direta sobre o retrato atual. Esse quadro, para começar, pode nos deixar em dúvida sobre o que temos para celebrar e o que temos para lamentar. Por isso, o título se refere a revoluções, mas alertando para o ritmo lento.

A pesquisa realizada pelo Instituto Ethos e pelo Ibope Inteligência em 2010 é parte de uma série iniciada em 2001 e que tem como título Perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas. Nos resultados de 2010 há uma comparação com os anos anteriores – 2001, 2003, 2005 e 2007. Focando nas mulheres, a pesquisa revela que elas representavam 6% dos cargos executivos em 2001 e passaram a representar 13,7% em 2010.

Temos que, nessa pesquisa do Instituto Ethos, as mulheres evoluíram oito pontos percentuais em nove anos. Considerando que elas representam hoje 51% da população, em quantos anos atingiremos a igualdade entre homens e mulheres no quadro executivo das empresas no Brasil? Seriam 42 anos de espera a partir de 2010, supondo que todas as barreiras foram retiradas, que as condições de igualdade estavam dadas a partir daquele momento, enfim, que estaria decretado o fim do machismo e de todos os entraves que produzem este dado. Como não dizer que essa mudança na direção da igualdade está lenta demais?

Surgem aí algumas questões que estão presentes nos diálogos com a alta liderança das empresas e equipes técnicas sempre que apresento esses dados. Uma delas é que a causa dessa distância tem razões históricas como se o momento atual não fosse também uma atualização das motivações que geram desigualdades. Houve um momento em que se rompeu com a lógica da desigualdade e agora, nos dias de hoje, estamos apenas esperando os frutos resultantes desta postura pró-equidade de gênero? É uma questão de espera para que os resultados apareçam naturalmente?
Infelizmente não há indícios de que o mundo empresarial, genericamente falando, tenha tomado a decisão para além da legislação existente e das demandas da agenda de direitos humanos, por promover o respeito às mulheres quanto ao direito a oportunidades iguais no desenvolvimento na carreira.

Convidado pelo Instituto Ethos, além de fazer parte da equipe de especialistas que comenta os resultados da pesquisa, elaborei um estudo com aquelas empresas que disseram realizar ações afirmativas. As empresas demonstraram receio em discriminar positivamente as mulheres, preferindo, em geral, investir em processos de sensibilização dos homens. As empresas não detalharam que tipo de sensibilização estavam realizando. Era para sensibilizar os homens para a importância do tema da equidade de gênero, para que não atrapalhassem a carreira das mulheres, para que promovessem mulheres a cargos de liderança?

Raras são as empresas que apresentaram ações como mentoring focado em mulheres. Programas de mentoring são utilizados para aproximar gestores mais experientes de profissionais identificados como potenciais líderes. Quando utilizados a serviço da equidade de gênero, é constituído um grupo de mulheres e se espera que essa transferência de conhecimentos, habilidades e atitudes possa favorecer que um número maior delas rompa as barreiras para ocupar postos de liderança. Em geral, mesmo esses programas podem ter motivações equivocadas. Alguns partem do princípio de que não há discriminação na empresa, que o problema é das mulheres, sua falta de experiência ou competências para assumir postos mais elevados.
Não há como superar essa desigualdade apenas colocando foco na incompetência das mulheres, como dizem, mas é preciso focar, sobretudo, na incompetência da empresa em reconhecer qualidade nas mulheres, seus direitos, e a necessidade que a própria organização tem de melhorar a qualidade de sua relação com todas as mulheres presentes em todos os seus públicos de relacionamento: clientes, fornecedores, empregados, comunidades, entre outros.

Nem é preciso lembrar, além dos dados acima citados, que as mulheres são maioria entre os que possuem nível universitário, possuem mais anos de escolaridade que os homens, já estão presentes em todos os cursos de formação universitária, sendo que em alguns, como medicina, as mulheres já são maioria entre os diplomados. Por outro lado, também não é preciso lembrar que ainda ganham menos que os homens, mesmo quando ocupam as mesmas funções, quando possuem o mesmo número de anos de estudo que eles ou o mesmo tempo de empresa. Todos estes dados são divulgados amplamente por ocasião, sobretudo, do Dia Internacional da Mulher, em março.

Há um quadro que permite falar em revolução? Acredito que sim. A entrada em massa da mulher no mercado de trabalho aconteceu nos anos 70. Eram 18% de mulheres trabalhando e, em 40 anos, chegaram a quase 50% na população economicamente ativa. Nos EUA, por exemplo, elas se tornaram maioria no mercado de trabalho em 2010. Lá, como cá, o desafio de enfrentamento do machismo e de suas consequências na vida de todos é ainda presente, até mesmo nos debates realizados na campanha eleitoral de 2012, entre Obama e Mitt Romney.

A revolução acontece não apenas na empresa ou no mundo do trabalho, mas no cotidiano de homens e mulheres, suas famílias, na forma como distribuem tarefas em casa. Os dados mais recentes do IBGE, que investiga quantas horas homens e mulheres dedicam ao trabalho doméstico, estão na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) divulgada em 2012. Eles nos mostram que as mulheres dedicam 27,7 horas e os homens dedicam 11,2 horas. É um dado que vem apresentando melhorias, mas ainda em ritmo lento e que ajuda a explicar a dificuldade da mulher em dedicar tempo ao networking, como se usa dizer no ambiente de trabalho, para melhorar sua visibilidade e ser considerada nas próximas promoções.

Nos anos 80, começamos a utilizar mais frequentemente a expressão teto de vidro para dizer que as mulheres entravam no mundo do trabalho e encontravam barreiras quando poderiam ascender a postos de liderança. Com base no teto de vidro, as medidas para promoção da equidade de gênero nos postos de liderança teriam foco no citado programa de mentoring, por exemplo. O labirinto que a mulher enfrenta num mundo de empresas que é masculino, masculinizado e masculinizante – ou MMM, termo que criei em 2009 para descrever organizações que são masculinas na sua demografia interna; masculinizadas nos seus rituais e masculinizantes na pressão para que todos se comportem como homens ou um tipo idealizado de homem que nem mesmo todos os homens conseguem ser – coloca barreiras em todos os lugares e momentos em que elas aparecem, não apenas naquele em que a mulher tenta fazer carreira.

Qual o impacto deste mundo MMM nos resultados das empresas em termos de atração de bons profissionais ou de talentos? E para os resultados dos negócios numa sociedade onde a mulher é maioria e os produtos, serviços e qualidade do atendimento precisam considerar e reconhecer suas características? A reflexão sobre a questão da mulher reside apenas na agenda de direitos humanos, ou seja, a promoção da equidade de gênero é somente uma exigência externa, interesse legítimo de uma sociedade que não aceita a discriminação da mulher?

A tendência, frente a essa divulgação dos dados que insistem em falar na desigualdade porque ela é persistente, é que o tema da mulher se torne o tema da qualidade das relações de gênero que o mundo empresarial mantém em todos os níveis, com todos os públicos ou stakeholders. O tema deixa de ser assunto da área de responsabilidade social, quando muito, ou da hora do café, como é mais comum, para ganhar destaque nas agendas de trabalho da alta liderança e dos gestores em geral das empresas.

Essas empresas podem fazer a diferença entre práticas meramente assistencialistas, que acabam até mesmo culpando a mulher, tratando-a como uma "coitadinha" que precisa de apoio, e aquelas práticas que, alinhadas com direitos humanos e negócios sustentáveis, constroem organizações masculinas e femininas, de cooperação e parceria, prontas para dar respostas mais condizentes com as revoluções que já estão ocorrendo em toda a sociedade.

Em qual empresa você, homem ou mulher, gostaria de trabalhar? Naquela em que ser homem é como ter um passaporte direto para ocupar 86% dos postos de liderança? Como você está se preparando, homem ou mulher, para viver em organizações não mais MMM? E a educação dos filhos está coerente com essas escolhas que você está realizando para sua vida profissional ou os meninos continuam interditados para algumas brincadeiras enquanto as meninas já brincam de tudo: casinha, boneca, bola, carrinho, jogos eletrônicos, fazem balé, judô, aula de futebol? Em qual sociedade você prefere viver e qual contribuição tem oferecido para ela?

* Reinaldo Bulgarelli é sócio-diretor da Txai Consultoria e Educação e especialista em valorização da diversidade no ambiente empresarial; coordenador dos cursos de sustentabilidade, responsabilidade social empresarial, diversidade e gestão do terceiro setor do Programa de Educação Continuada da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo.

O grande paradoxo - Luiz Vicente Gentil


Estado de Minas: 23/02/2013 

Mulher acende vela em apagão que atingiu o Nordeste do país em fevereiro de 2011 (EDUARDO MAIA/DN/D.A PRESS - 4/2/2011)
Mulher acende vela em apagão que atingiu o Nordeste do país em fevereiro de 2011


O Brasil é um país com abundância de recursos hídricos e tem o pleno domínio da tecnologia para a produção de energia a partir da água. Porém, tem uma das energias mais caras do mundo e vive às voltas com apagões e ameaças de racionamento. O engenheiro Luiz Vicente Gentil, professor da Universidade de Brasília (UnB), um estudioso do sistema elétrico brasileiro, faz uma análise do cenário atual e mostra quais são os entraves que impedem o país de ter uma energia barata e farta.

Trabalho de janeiro, realizado na Universidade de Campinas (Unicamp) e Universidade de Brasília (UnB) mostra a relação dos problemas e opções de soluções para tornar competente o sistema elétrico brasileiro. Eles estão ligados à infraestrutura, à governabilidade e ao marco regulatório. Todos eles, problemas fáceis de resolver no curto, médio e longo prazos, diante do potencial energético do país, ainda não explorado de forma profissional. O Brasil tem a maior reserva mundial de energia elétrica em forma de água, urânio, biomassa, combustíveis fósseis (carvão, óleo, gás) e vento. São tecnologias maduras e economicamente viáveis. No entanto, ainda consegue produzir uma das mais caras eletricidades do mundo, com racionamentos e apagões.

O baixo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em 2012, de apenas 1,1%, está em parte relacionado ao alto preço da tarifa de energia. A China, país emergente com menos recursos energéticos que o nosso e com uma população de 1,4 bilhão de pessoas, cresceu 7,7% em 2012. A tarifa é uma das variáveis do sucesso, quando menor, o que não ocorre aqui. O nosso consumidor paga US$ 141 por megawatt; nos Estados Unidos, o valor é de  US$ 74 por megawatt e, no México, de US$ 45 por megawatt. Mesmo com a redução média de 11% na tarifa, anunciada pelo governo e a vigorar a partir deste mês, a energia continua sendo ruim e cara. Ajuda, mas não resolve, pois o quadro não mudará pela Medida Provisória 579 diante da profunda intervenção e insegurança institucional que causou.

Em 10 de novembro de 2009, 70 milhões de brasileiros ficaram sem eletricidade; em 25 de outubro de 2012, foram 53 milhões. O apagão de 2001 durou 14 meses, obrigou o racionamento de energia. Foi causado pela falta de planejamento, baixo nível dos reservatórios das hidrelétricas, tarifa cara e ausência de investimentos na infraestrutura de energia. Para resolver esta crise institucional, a Lei 10.848, de 15 de março de 2004, com todo o arcabouço jurídico paralelo, tentou criar um novo marco regulatório. O Ministério das Minas e Energia (MME, 1960), a Operadora Nacional do Sistema (ONS, 1998), a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel, 1996) e o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE, 1997) já existiam em forma embrionária. Foram criados em 2004 a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE). Isto criou estabilidade institucional. Porém, nestes últimos nove anos, a situação voltou a se deteriorar, com a falta de investimentos, má gestão, apagões, racionamento, eletricidade cara – uma das custosas do mundo –, apesar dos esforços do governo federal em dar uma redução nas tarifas e mensagens à população.

No Brasil, em 36 anos, o crescimento da população foi de 81% e o aumento da demanda por energia elétrica, de 646%. Ou seja, oito vezes mais. Isso causou uma torção em toda a infraestrutura do Sistema Elétrico Brasileiro (SEB), deixando para trás variáveis importantes, como transmissão, geração e distribuição de energia boa e barata, como a das hidrelétricas, novos investimentos, marco regulatório adaptado às atuais realidades, travamento administrativo, não só pela burocracia, e cipoal de leis, decretos, portarias e resoluções difíceis de decifrar. O aumento do consumo total de energia no Brasil foi de 240%; já o consumo de eletricidade aumentou em 645%, ou seja, a demanda elétrica foi 2,7 vezes maior que a demanda global por energia. Nesse mesmo período de 36 anos, a população mundial cresceu 70%; já a demanda por eletricidade aumentou bem mais: 327%.

Nos últimos 12 anos, a migração de 40 milhões de brasileiros das classes D e E para a consumidora classe média C gerou uma demanda adicional média anual de 4,5%. Isso sobrecarregou o sistema sem a correspondente expansão nas linhas de transmissão. Para uma população que cresce 0,8% ao ano, há uma grande pressão por energia per capita. Nestes últimos, a sociedade e a demanda cresceram, mas a infraestrutura e os serviços ficaram obsoletos. Isso significa que os sintomas que existiam em 2000 estão de volta, rondando a sociedade com um provável novo apagão. E com o agravante de a ameaça aparecer no delicado momento de renovação das concessões das hidrelétricas e da rede básica, que somam 82% de toda a geração elétrica que tem hoje o país. Embora isso seja pouco divulgado na mídia, existe o risco de os investidores internacionais abandonarem ou venderem os ativos de geração, distribuição e transmissão pelo simples fato de o negócio elétrico não ser mais compensador. Como prova disso, basta lembrar que o complexo Eletrobras perdeu 58% de seu valor na Bovespa desde a emissão da intempestiva MP 579; isso é considerado um perigo em termos econômicos. Seria prudente se houvesse melhor estratégia política de longo prazo em relação a um tema de tamanha envergadura e risco, como esse da segurança nacional do abastecimento elétrico.

Não só países emergentes, mas também os desenvolvidos têm lições a dar. O terremoto e o tsunami de março de 2011 no Japão reduziram a presença da geração nuclear na matriz energética daquele país, encarecendo a tarifa de energia elétrica pela entrada, na geração, de termelétricas a gás, e reduzindo a competitividade industrial, a exportação e o PIB do Japão em 2012. As termelétricas brasileiras junto com as hidrelétricas a fio d'água são uma mistura explosiva para o Brasil; de um lado, pela pequena geração obtida em relação à total capacidade das hidros; de outro, pela tarifa elevada da energia produzida pelas térmicas.

Para criar a base de um novo sistema elétrico brasileiro, este trabalho da Unicamp e da UnB apresenta caminhos, fruto de um avançado estudo de dois anos nos segmentos de marco regulatório, governança e políticas que o nosso país pode e deve seguir para obter o desejado: eletricidade barata, farta, constante e que beneficie de forma justa os players, que representam 18% da energia demandada no Brasil.

A primeira ação mostra que países maduros operam no mercado livre e que os emergentes, ou subdesenvolvidos, preferem o controle estatal, sem transparência, com racionamento, uso da máquina pública para interesses político-partidários e produção de energia cara, como no Brasil. Nos países maduros, as agências reguladoras não são do Estado; elas são independentes para beneficiar o coletivo e não grupos, seja do governo ou de corporações privadas. Alguns países praticam o marco regulatório em forma de pêndulo, optando, de tempos em tempos, pelo liberal ou pelo regulado, conforme o partido político naquele momento no poder. O Brasil, pela sua economia e evolução social, já deveria estar no mercado livre de eletricidade.

A segunda ação trata da necessidade de as hidrelétricas gerarem energia com reservatório e não a fio d'água, modelo de produção no qual existe um grande investimento para gerar apenas um pouco de energia, em função do rio original, que, por sua vez, é produtivo apenas na época das águas. A produção a fio d'água é uma aberração de política pública para um país como o Brasil, de grandes dimensões territoriais e carente de energia barata, farta e ambientalmente correta, como a gerada pela água. Tal situação obrigou o país a ter termelétricas para compensar a falta de eletricidade das hidros. É o momento de refazer a lei que tanto prejudica a população: a da geração a fio d'água.

A terceira linha de ação é o Net Metering (NEM) associado ao conceito de Geração Distribuída (GD). Ou seja, geração próxima à demanda – não só para fontes renováveis, como também para outros combustíveis –  e com menos de dez megawatts de potência instalada por unidade. Os Estados Unidos, desde 2005, e o Brasil, via Aneel, já têm algo nesse sentido, porém ainda tímido.

Na conta de energia, temos 45% de impostos, taxas, encargos e subsídios. O governo desonerou alguns deles, entre os mais de 30 existentes, com redução média de 11% a partir deste mês. Poderia ter eliminado 50% deles em um horizonte de 10 anos. O mais pesado é o ICMS, que varia de 18% até 33%, pois nas regras do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) cabe aos estados decidir isso. Esse estudo defende também a redução, em 50%, em 10 anos, do ICMS cobrado da conta de energia. Faz isso por dois motivos: primeiro, porque a redução desse imposto é proporcional ao crescimento socioeconômico do país. Segundo, porque na matriz da receita estadual o ICMS da conta de luz não tem impacto significativo. Mas esbarra nas alianças político-partidárias entre União e estados, em detrimento dos consumidores industriais e residenciais. Em função disso, indústrias eletrointensivas, principalmente multinacionais, estão fechando as portas no Brasil e se mudando para outros países de energia mais barata. Em algumas delas, esse insumo chega a corresponder a até 40% dos custos, superior até ao da folha de pagamento.

As 105 pessoas físicas e as 65 pessoas jurídicas entrevistadas nesse trabalho da Unicamp/UnB apontam as licenças ambientais como um dos entraves à geração. São documentos que podem ser caros, demorados e até abusivos, expedidos pelas secretarias estaduais de meio ambiente e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Esse trabalho sugere que a lei seja corrigida e as licenças não demorem mais de 30 dias corridos para a sua liberação ou reprovação; algumas demoram até um ano e sete meses. Os entrevistados registram que até rota de pássaros e alguns peixes podem embargar obras gigantes, de muitos milhões de reais, já aprovadas e em construção.

A última ação para ajudar o Brasil a entrar nos trilhos é a da governabilidade. O quadro político não tem agilidade proporcional à rapidez das mudanças sociais, tecnológicas e econômicas exigidas. Entre elas está o fato de que a expansão do consumo de energia é maior que a da infraestrutura. Como o Estado tem pouco caixa, procura se unir à iniciativa privada. Entre outros efeitos desse quadro, surge um vácuo legislativo, uma desaprovação popular e um desempenho político nem sempre transparente. O governo às vezes precisa emitir medidas provisórias casadas com o Legislativo. Os entrevistados nessa pesquisa da Unicamp/UnB mostram um certo cansaço com relação a fatos do mercado de eletricidade como a burocracia, o corporativismo, o uso da máquina para fins duvidosos, o alto risco com baixo lucro, assim como uma desconfiança em um horizonte mais largo. A maioria dos segmentos sociais percebe a existência deste quadro, mas se diz sem condição de mudar a situação. Talvez um novo apagão, como o de 2001, traga um pouco de bom senso, vontade política e consciência acerca do bem comum e da necessidade de cooperação suprapartidária entre os que decidem os destinos da cara eletricidade paga pelos 193 milhões de brasileiros.


Luiz Vicente Gentil é professor da Universidade de Brasília (UnB) e engenheiro com pós-doutorado em marco regulatório elétrico.

E-mail: gentil22@unb.br 

Será o fim do livreiro? - Afonso Borges


Estado de Minas: 23/02/2013 

Amadeu Rossi foi o representante mais ilustre, em Belo Horizonte, de uma grande geração de livreiros, profissão que perde espaço a cada dia
 (BETO MAGALHÃES/EM/D.A PRESS - 18/12/06)
Amadeu Rossi foi o representante mais ilustre, em Belo Horizonte, de uma grande geração de livreiros, profissão que perde espaço a cada dia

O mundo dos livros está passando por grandes mudanças. Uma delas é a ‘‘supermercadização’’ das grandes livrarias, que comercializam seus espaços para as grandes editoras, como mostra artigo do jornalista Afonso Borges, coordenador do projeto Sempre um papo. Em seu artigo, ele lamenta a desvalorização da figura do livreiro, que contribuiu para formar gerações de apreciadores do bom livro, e defende que o governo conceda incentivos fiscais a linhas de crédito para empresários que quiserem investir em livrarias, ou seja, em estabelecimentos comerciais que vendam apenas livros.


O mundo editorial, definitivamente, está passando por um momento delicado. Palavras novas como e-books, riders, iTouchs, iPads, notes e laptops estão deixando todos de cabeça virada. Mas ninguém, de verdade, esperava esta notícia: as grandes redes de livrarias estão comercializando espaços em seu interior. É o seguinte, amigos leitores desavisados: quando vocês virem aquelas grandes pilhas de livros nas megastores, saibam que aquele espaço é vendido como se fosse um anúncio de revista.  Os livros não estão ali por gosto ou indicação da livraria e sim porque alguém pagou para eles estarem naquela posição, na maioria das vezes, na vitrine, ou em destaque nas gôndolas. Cada centímetro de altura tem um preço.

Quebra-se aí, de cara, uma relação tão antiga quanto a invenção da livraria: a credibilidade da curadoria do livreiro. O bom e respeitável livreiro coloca na frente da sua casa ou na banca principal o mais vendido, sim. Mas coloca também o que  ele indica. O que ele considera de mais relevante, o que ele recomenda. Esta relação de confiança formou gerações de bons leitores e apreciadores do ambiente agradável e instigante de uma livraria. A lenda do bom livreiro que sabe se o livro vai vender passando as páginas rapidamente e cheirando aquele ventinho vale até hoje. Afinal, quem é que garante, mesmo, que um livro vai ou não vai vender? A indústria editorial está recheada de grandes livros e grandes fracassos.

Há que se fazer um parêntese para as heroicas livrarias pequenas e médias. Aquelas poucas que ainda restam neste país de megastores. Ali ainda se encontra o vendedor autêntico, que, antes de indicar um livro, passa os olhos nele ou o lê, de verdade, inteiro. Ainda se encontra os bons livros, em destaque. Aquela livraria em que você entra e sabe que do lado esquerdo, na terceira prateleira de baixo pra cima, está lá, há anos, a obra completa de Fernando Pessoa. E nas prateleiras seguintes, poesia. Poesia, esta raridade absoluta nas grandes livrarias brasileiras.  E em pleno século 21, quando a neurociência prova que a velha arte de Withman faz o cérebro trabalhar à velocidade de fórmula 1 durante a leitura de um poema. Por que será?

Na ponta de lá da cadeia alimentar, as editoras também contribuem de forma anacrônica. Estarão reinventando a roda? Ou esperando a onda voltar? Aquela onda que quando volta deixa um terreno arrasado? Vejam, as editoras estão investindo valores significativos neste marketing. Mas só investem, claro, nos livros que podem dar retorno comercial, que são os best-sellers internacionais. E, neste ponto uma curiosidade: nem sempre as editoras investem em peças publicitárias e promocionais por causa do retorno comercial em si. Hoje, elas investem porque são obrigadas – porque assinaram contratos internacionais com cláusulas draconianas, que exigem um determinado volume de recursos nesta área.

Esta iniciativa vem sendo chamada de "supermercadização" do livro. Esse termo bizarro, curiosamente, não tem sinônimo em outras áreas da economia. Foi cunhado quando a Editora Record comprou uma das mais tradicionais casas brasileiras, a Paz e Terra, dona de um catálogo invejável pela qualidade. Na época, o dono era Marcus Gasparian, filho de uma lenda do mundo dos livros, Fernando Gasparian. A Paz e Terra é conhecida pelas edições em ciências sociais e humanas e seu catálogo inclui 1.200 títulos de 500 autores, entre eles, Paulo Freire, Norberto Bobbio, Eric Hobsbawn, Kenneth Maxwell e Celso Furtado. Em entrevista, Gasparian declarou que não conseguia fazer seus livros serem vistos pelos leitores.

Aí vêm as perguntas. Como ficarão os autores de ficção brasileira? Vai rolar a conversa do gato correndo atrás do próprio rabo? Ou seja, não se investe em ficção brasileira porque não vende, e vice-versa? Eu duvido, mas duvido muito que, se as editoras fizerem este monumental esforço de marketing em cima dos bons escritores brasileiros, esta história não muda. Muda sim. E teríamos, aqui, grandes vendedores, best-sellers nacionais que, além de tudo, podem rodar o país falando para os seus leitores. Fazendo um outro papel, tão importante quanto os demais, que é incentivar o hábito da leitura.

E outra pergunta: é fato que o Brasil tem pouquíssimas livrarias. Falo daquelas de verdade, que só vendem livros. Hoje as megastores, principalmente, uma de origem francesa, têm no livro um objeto de decoração (de muito mau gosto, por sinal). E é neste ponto que o mais grave transparece: como fica a questão espaço físico? Se elas estão vendendo estes espaços, onde ficarão os livros das editoras que não têm grana para comprar o anúncio, digo, gôndola? Francamente, do jeito que as coisas vão, daqui a pouco, para estas editoras exporem seus livros terão que pagar. E, de certa forma, já pagam. Como? Simples: uma tal rede só aceita tal livro de tal editora se o desconto aumentar. É matemática perversa, pura: hoje, o normal é a livraria ficar com 30%, 35% do valor de capa do livro. Para pegar o livro, eles pedem 40%, 50%. Entenderam? E aí acontece o obscurantismo: eles recebem o livro, em consignação, na maioria das vezes, e os colocam onde? Na prateleira no canto, em pé, no meio de mais de uma centena de outras publicações, que vêm da mesma origem. E, dos 10 mais vendidos em ficção do ano de 2012, tem um só brasileiro: o bravo, bravíssimo Luis Fernando Veríssimo. Mas não é um romance. Aí entra a outra pergunta: não estariam as editoras e as grandes redes armando uma armadilha contra si próprias? Ao impor, visualmente, ao consumidor a compra dos best-sellers não estariam acabando com o bom gosto? Ou pelo menos baixando o nível da leitura, consideravelmente? Como fica, de verdade, aos olhos do bom leitor, a questão da qualidade? Em outro sentido, os leitores que gostam de bons livros, livros de qualidade, vão acabar fugindo destas megastores e procurando outras fontes de informação e consumo. Porque o mercado é dinâmico e os modismos passam.

No mundo do negócio, a livraria convencional não existe. As contas não fecham. Piadas à parte, o que fecha, mesmo, é a própria livraria, que deveria ser incluída na pauta da ONU como patrimônio cultural da humanidade, objeto de extinção. Com a experiência de quem já teve uma delas durante 10 anos pergunto: a empresa recebe um produto com uma margem de 35% de desconto; 5% vão para a operadora de cartão de crédito; entre 18% e 23%, impostos. É um produto que não vende em escala, ou seja, o comprador leva um ou dois, no máximo. Resultado: prejuízo na certa. Estou cansado de arrasar amigos que dizem acalentar o sonho de ter uma livraria. Faço as contas e peço a eles para se sentarem, meditar e, com paz e calma, esperar a vontade passar. A solução é a da vez: a livraria tem que se transformar em papelaria, loja de CDs e outros espantos. Comprei, uma vez, em uma delas, o mais lindo isqueiro que já vi. Guardo-o com carinho, na gaveta de objetos inúteis.

Qual seria a solução, afinal? Em primeiro lugar, estímulo ao negócio. Mas estímulo diferenciado, via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outras fontes de financiamento. Quem quiser abrir uma livraria terá isenção de impostos, empréstimos facilitados e outras benesses fiscais. Mas tem que comprovar que ali apenas livros serão vendidos. Imóveis, carrocerias usadas de caminhão e gravatas escocesas não serão permitidas. Vou além, e repito: caso isso não aconteça, a livraria convencional não vai mais existir no Brasil. Aliás, existe?

Em outra medida, investimento sério e concentrado no autor nacional. Reserva de mercado? Não: inteligência estratégica, com os olhos focados no futuro, ou seja, o autor de ficção brasileiro pode pegar um avião e ir até Araxá, interior de Minas, conversar com um público ávido de conhecimento e informação. Como aconteceu com a Fliaraxá – Festival Literário de Araxá, que reuniu mais de 6 mul pessoas em três dias de realização. O escritor brasileiro é a salvação da lavoura. Anotem, façam as contas. Mas esta iniciativa deve ser conjunta das editoras e órgãos governamentais de cultura e educação.

E não preciso inventar a roda: festivais, feiras, rodas, projetos, programas, uma onda literária que, na verdade, já começou. Vejam os números da Secretaria do Livro e Leitura do Ministério da Cultura: cresceram por milagre e dedicação de tantos. Por falar nisso, uma informação espantosa: há apenas um ano, a Lei Rouanet foi modificada, via instrução normativa, permitindo que estes eventos sejam enquadrados no artigo 18, ou seja, o patrocinador pode deduzir 100% do valor investido. Ou seja, desde que foi criada, há 21 anos, quem quisesse patrocinar eventos literários, mesmo que com entrada franca, tinha que desembolsar 30% do valor em recursos próprios, se igualando a eventos como os lucrativos espetáculos musicais. Curioso, não?

O escritor brasileiro é a bola da vez. Os grandes eventos de literatura estão aí aos montes, crescendo e disputando o autor nacional a tapa e pedra.  Pena que parte gigantesca do governo não veja isso.  E lamentavelmente, ainda, como as megastores, tenta vender espaços na gôndola, em vez de se concentrar no principal: a nossa inteligência, a nossa formação, o nosso bom gosto. Como o futuro é hoje, nestes tempos velozes, vamos ver no que dá isso. Depois de amanhã.

Afonso Borges é jornalista e coordenador do  projeto cultural Sempre um papo

Rancor, ganância e esnobismo universitário - MARCELO RUBENS PAIVA


O ESTADO DE S. PAULO - 23/02/2013

É difícil detectar como surgiram alguns achados brasileiros: 

1. O Chorinho. Não a música, mas a dose extra que nos é servida na maioria dos bares e restaurantes. Quando começou? Peça um uísque. O garçom trará a garrafa, para você conferir a procedência, exigência de uma economia que convive há séculos com contrabando e pirataria, servirá a dose numa pequena cuia de alumínio de 15 a 60 ml chamada dosador, ou medidor, passará o maltado para o copo com ou sem gelo, e em seguida banhará da própria garrafa as pedras que flutuam. É lançado o sorriso cúmplice, vem a piscada: "Só pra você, que é exclusivo".

Se você é da casa, sabe para que time o garçom torce e até o apelido dele, a dose extra é "no capricho", outra expressão brasileira dúbia, pois indica que há doses e porções que não vêm caprichadas, já que existem aquelas especiais para clientes preferenciais.

Com um chorinho, o cliente se sente mimado, qualificado. O estabelecimento aparenta ofertar mais do que o usual, fugir à regra, tratar você com devoção, sem mesquinharia, sem se importar com os lucros, pois foi com a sua cara, gostou do seu jeito,você é um cara bacana, que merece a quebra de protocolos. Ambas as partes ficam satisfeitas. Pode-se dizer que, como em Casablanca, é o começo e a prova de uma longa amizade.

No entanto, é evidente que a dose extra já está embutida no preço, que os R$ 20 em média que você paga por uma dose de um bom escocês envelhecido é exorbitante, já que a garrafa de um litro custa perto de R$ 100, dependendo do fornecedor - se não atravessou o Rio Paraná numa balsa improvisada, proveniente das destilarias do Chaco -, garrafa em que vem muito mais do que quatro ou cinco doses, talvez 30, talvez 40, ou 66,6 doses, se utilizado o medidor de 15 ml, cuja matemática tira do coma alcoólico o mais dedicado dos boêmios: está-se pagando R$ 1.320 por garrafa, 13,2 vezes mais. Portanto, o chorinho não é um favor,é um truque ilusório que entorpece e ilude o brasileiro.

Outro exemplo: o milk-shake que vem acompanhado pela sobra. O garçom deposita o copo de vidro e o de alumínio em que o sorvete foi batido.

Em lanchonetes, a sobra dá outra dose.

E tem aquela que a sobra é maior do que a dose original, como o prato "que dá pra dividir", outra invenção brasileira.

É verdade que é difícil dosar a quantidade de cada cliente. O que um surfista adolescente bebe ou come é diferente daquilo que uma modelo que fará teste para o próximo desfile deixa no prato, ou moças com colesterol alto e rapazes com glicemia alta evitam.

Mas se você se encanta com a generosidade de quem serve, relaxa. Está tudo embutido no preço.

2. Sertanejo Universitário. Universitário por quê? Tem pensamento pré-socrático,semiótica, behaviorismo,sociobiologia, antropologia e darwinismo social, niilismo e hipóteses do pensamento ocidental debatidas nas letras? Algum indício das contradições do pensamento marxista? Marx aparece como historiador ou economista? A dialética é retratada num rasta pé ou bate-coxa com diploma? Mimesis, de Auerbach, dá para ser anunciado. Rola a letra "Auerbach é das mais significativas referências, nos estudos de cunho hermenêutico, eu, eu, eu, de exegese literária, ai, ai, ai, fez uma abordagem original da questão da representação, sai do chão!"? Nada disso. Sertanejo universitário retrata o pensamento que rola fora das salas de aula nas baladas estudantis.

Como o forró universitário, que nasceu no Remelexo, casa de Pinheiros frequentada pela juventude dourada da USP, que queria em São Paulo aquilo que dançava nas férias de Trancoso, Itaúnas e Canoa Quebrada, o sertanejo universitário se apresenta como uma releitura distanciada do modelo anterior. É influenciado pelo sertanejo de raiz, de Tonico & Tinoco, Alvarenga & Ranchinho, e pelo sertanejo mullets, de Chitãozinho & Xororó, Leandro & Leonardo, mas com um conteúdo que recupera a futilidade do novo pagode e detalha os efeitos macroeconômicos da expensão da fronteira agrícola e do lulismo - como exaltação do consumo, facilidade do crédito e mudanças na pirâmide social.

O Camaro, símbolo das pistas de corrida Nascar do Meio-Oeste americano, é retratado como uma arma para a vingança na batalha da luta de classes da sedução amorosa no sucesso de Munhoz & Mariano, Camaro Amarelo: "Agora eu fiquei doce igual caramelo, tô tirando onda de Camaro amarelo, e agora você diz "vem cá que eu te quero", quando eu passo no Camaro amarelo. Quando eu passava por você na minha CG, você nem me olhava. Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber, mas nem me olhava. Aí veio a herança do meu véio, e resolveu os meus problemas, minha situação."

O antigo motoqueiro de uma humilde,mas eficiente CG 125 cilindrada, modelo da Honda de motor 4 tempos monocilíndrico arrefecido a ar, cuja potência máxima é de 11,6 cavalos e custa em torno de R$ 5,5mil, ficou doce e rancoroso ao adquirir um carro da Chevrolet, que custa a partir de R$ 200 mil, V8 de 406 cavalos, com câmera de estacionamento com visualização através de uma tela de LCD de sete polegadas.

"Do dia pra noite fiquei rico, tô na grife, tô bonito, tô andando igual patrão. E agora você vem, né? Agora você quer. Só que agora vou escolher, tá sobrando mulher", finaliza o novo-rico.

Já a dupla Ronny & Rangel, do sucesso Puxa, Agarra e Chupa, que virou obrigatório em formaturas universitárias, deu um troco mais ambicioso no projeto da dupla anterior. Camaro?

"Todo mundo fala de carrinho, mas meu negócio é outro, comprei jatinho, a playboyzada sai de caminhonete, meu avião lotado só de piriguete. Estoura uma champanhe pra gente comemorar, o clima tá gostoso, o bicho vai pegar. Vai se acostumando que ninguém é de ninguém. Ai meu Deus do céu, ram, hoje tem!"

Se Puxa, Agarra e Chupa era o reflexo de um evidente caso de transferência do desejo pela mãe, que impedia o autor de tomar atitudes, expor suas vontades ao viver encolhido num espectro de castração ("com as palavras eu me perco, eu não sei falar direito, e quando eu tô a fim, timidez é meu defeito"), Festa no Jatinho acredita no sonho sem limites, no projeto de redistribuição de renda, proveniente de um novo sertão rural irrigado, terra do agronegócio, de oportunidades que proporcionam inversão da pirâmide social aliada ao Prouni e sistema de cotas que oferece chances antes remotas de ascensão.

E pensar que Menino da Porteira e Chico Mineiro, compostos pela universidade da vida, deram em ganância e esnobismo "universitários".

O que diria Jesus? - Zuenir Ventura


Tomara que Ele interfira na escolha do novo Papa, em vez de, desiludido, repetir a velha piada: ‘Pare o mundo que quero descer’


A revista “Visão”, de Portugal, fez uma enquete
junto a personalidades da cultura
e da política portuguesas para especular
sobre o que Jesus diria se aqui
voltasse. Com bom humor cristão, o romancista
António Lobo Antunes desqualificou o trabalho:
“Como voltar, se de cá ele nunca saiu?” Mas digamos
que Ele tenha dado uma saidinha e que
viria não ainda para julgar os vivos e os mortos,
mas numa visita rápida para ver como estão as
coisas. Não se trata de um exercício de adivinhação,
e sim de hipóteses com base nos textos bíblicos,
o que nos permite entrar no jogo também
fazendo nossas simulações. Por exemplo,
Cristo com certeza ficaria feliz de constatar que,
em tempos de Twitter, nenhum líder tem tantos
seguidores quanto Ele: de 2 a 3 bilhões. Por outro
lado, em termos de qualidade, não ia ficar
nada satisfeito com o que veria à direita e à esquerda,
fora e dentro da igreja. A primeira decepção
seria constatar que a sua pregação de
paz e amor foi substituída pela violência urbana
e pelas guerras praticadas em nome do Pai.

E o que Ele diria da crise atual — econômica,
financeira e moral — e da má distribuição da riqueza,
contra a qual tanto pregou? Certamente
se indignaria ao saber que o número de pessoas
que vivem com menos de 1 dólar por dia nos
49 países mais pobres do mundo duplicou nos
últimos 30 anos, chegando a 307 milhões. E
que, enquanto isso, as dez mais ricas têm mais
dinheiro do que Suécia, Finlândia e cada um de
outros 150 países. A concentração pode ter sido
consequência de Sua parábola: “É mais fácil
um camelo passar pelo fundo de uma agulha
do que um rico entrar no Reino de Deus.” Vai
ver que, diante da anunciada dificuldade de
entrar lá em cima, os ricos tenham preferido
permanecer aqui no Reino da Terra, que é para
eles um paraíso.


O maior desgosto do nosso Salvador, porém,
seria descobrir o risco de descer conclamando
inocentemente — “Deixai vir a mim as criancinhas”
— e ser mal interpretado, tendo em vista a
onda de escândalos de pedofilia que atinge o
clero. Imagina se a Sua chegada coincidisse com
a divulgação esta semana do dossiê de 300 páginas
elaborado a pedido do Papa por três cardeais
e que é uma espécie de radiografia do Vaticano
— uma antologia de escabrosos casos de corrupção,
promiscuidade, desvio de dinheiro,
escândalos sexuais, rede de prostituição homossexual.
Chocado, Bento XVI teria desabafado
afirmando que o seu sucessor deverá ser bastante
“forte, santo e jovem para enfrentar o que
o espera”. Tomara que Jesus interfira na escolha,
em vez de, desiludido, repetir a velha piada:
“Pare o mundo que quero descer.” 

Clima de apreensão namaior favela do Rio -ELIANA SOUSA SILVA


A notícia da entrada da UPP na Maré,
maior favela do Rio de Janeiro, chega
precedida de forte especulação. Afinal,
não se sabe quando e como será instalada.
Diante disso, os moradores aguardam a
confirmação da ação com expectativa e apreensão.
Em geral, eles entendem que essa iniciativa
representa a chegada, embora tardia, do direito
à segurança pública. Sem duvida, a garantia
desse direito é um passo importante para a legitimação
da condição de cidadão dos moradores
desses territórios.

Há muitos desafios a serem considerados na
extensão da UPP, por ser uma ação no campo da
segurança que intenciona, avalio, de maneira
progressiva, tornar-se política pública. A complexidade
em pauta que intriga e aviva governantes,
estudiosos do tema, profissionais da
área e todos que vivem nesse estado, precisa ser
considerada com matizes que combinem bomsenso
e reconhecimento do que já se produziu
até aqui. Diante disso, a população não pode ser
apenas testemunha do que está por vir e que
chega carregado com ares de espetacularização.

No caso da Maré não se pode deixar de considerar
o histórico de luta e conquistas de seus
moradores que, desde a formação de cada uma
das 16 favelas ali existentes, buscaram ampliar e
efetivar direitos básicos. Em função disso, a região
possui variados equipamentos públicos,
incomuns na grande maioria das favelas cariocas.
Mas isso não é suficiente. Ainda falta qualidade
nos serviços prestados, assim como muitos
outros direitos ainda são negados.

Chamo atenção, ainda, para a articulação das
Associações de Moradores da Maré que de maneira
singular protagonizaram no tempo todas
as conquistas assinaladas e, mais recentemente,
se fazem representar a partir do movimento A
Maré que Queremos. Essa iniciativa que, desde
fevereiro 2010, vem reunindo mensalmente as
16 instituições comunitárias e outras organizações
formulou um documento com as demandas
estruturais para a Maré e vem, de maneira
paulatina, discutindo com os diferentes órgãos
públicos como garantir qualidade e ampliação
dos serviços e direitos básicos para a região.

Como se pode observar, há um longo e frutífero
trabalho que já se conforma na Maré, mas,
sem dúvida, um direito ainda a ser perseguido é
o da segurança pública. E ai chegamos a um
ponto que devemos assinalar, qual será a agenda
da segurança pública para a Maré com a chegada
da UPP? Veremos acontecer iniciativas
inerentes a esse campo, como identificação e
enfrentamento das violências relacionadas ao
abuso de crianças e adolescentes, de mulheres,
de mediação de conflitos, de acesso à Justiça?
Os direitos dos moradores de ir e vir, de privacidade
e de expressão serão preservados?

Como já noticiado, a Redes da Maré, a Anistia
Internacional e o Observatório de Favelas iniciaram
a campanha Somos da Maré e Temos Direitos,
no intuito de contribuir para a garantia
desse conjunto de direitos e fortalecer as políticas
públicas no campo da segurança, através do
esclarecimento do morador sobre os seus direitos
e deveres no momento de uma abordagem
policial: nada de dificultar a ação dos policiais,
mas o Estado deve respeitar premissas básicas,
tais como não entrar nas casas sem a permissão
dos moradores.

Desse modo, não assistiremos de forma passiva
à ação das forças de segurança. Elas devem
representar a chegada efetiva de uma perspectiva
de presença republicana do Estado, e não
funcionar como um “exército de ocupação”,
considerando que está em um território de
guerra e com seus moradores sendo considerados
a “população civil do exército inimigo”.

Como cidadãos, o reconhecimento do direito
à segurança pública dos moradores da Maré,
dentre todos os outros, deve ser o ponto de partida.
E essa é a nossa perspectiva diante da possibilidade
de chegada da nova estratégia de segurança
pública que vem sendo construída pelo
governo estadual. 

Eliana Sousa Silva é diretora da Redes da Maré e da Divisão de Integração Comunidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Paul Krugman


O bloqueio dos tolos

DO "NEW YORK TIMES"
via Folha de São Paulo


E eles voltaram! Há cerca de dois anos, Erskine Bowles e Alan Simpson, co-presidentes da comissão de investigação sobre a dívida pública dos Estados Unidos, cujos trabalhos foram concluídos sem deixar saudades, nos alertaram de que uma terrível crise fiscal surgiria dentro de, ahn, dois anos, caso não adotássemos seu plano.
A crise não se materializou, mas eles estão de volta com uma nova versão. E, caso você esteja interessado, depois da eleição do ano passado --na qual o eleitorado norte-americano deixou claro que deseja preservar a rede de segurança social e elevar os impostos dos ricos--, os famosos fomentadores do flagelo fiscal adotaram posição ainda mais direitista, apelando por elevação de arrecadação ainda menor e por cortes de gastos ainda maiores.
Mas você não está interessado, está? Quase ninguém está. Bowles e Simpson tiveram seu momento - o annus horribilis de 2011, quando Washington foi capturada pelo alarmismo quanto ao deficit e pela insistência em que, apesar de um desemprego em longo prazo recorde e de custos de captação em recorde de baixa, deveríamos ignorar a criação de empregos e concentrar nossas atenções exclusivamente em uma "grande acordo" que supostamente (mas não na realidade) resolveria de uma vez por todas as disputas orçamentárias.
Aquele momento passou; até Bowles admite que a busca de um grande acordo está "respirando com a ajuda de aparelhos". (É hora de formar um painel da morte!) Mas o legado daquele ano de insensatez sobrevive, na forma do "bloqueio compulsório de gastos", uma das piores ideias de política econômica da História dos Estados Unidos.
Eis o que aconteceu: os republicanos, envolvidos em uma manobra de chantagem sem precedentes, ameaçaram forçar uma moratória dos Estados Unidos ao recusar uma elevação do limite para as dívidas federais a não ser que o presidente Barack Obama aceitasse um grande acordo nos termos definidos por eles.
Obama, infelizmente, não resistiu com firmeza; em lugar disso, tentou ganhar tempo. E, de alguma forma, as duas partes decidiram que o melhor meio de ganhar tempo era criar uma máquina do apocalipse fiscal que infligiria danos gratuitos à nação, na forma de cortes de gastos, a não ser que o grande acordo fosse obtido.
E como seria de esperar o grande acordo não surgiu, e a máquina do apocalipse será disparada no final da semana que vem. Há um debate tolo em curso sobre quem é o responsável pelo bloqueio, algo que quase todo mundo agora concorda ter sido uma péssima ideia. A realidade é que os republicanos e os democratas aceitaram a ideia.
Mas isso são águas passadas. A questão que deveríamos estar perguntando envolve qual seria o melhor plano para lidar com as consequências daquele erro compartilhado.
A política correta seria esquecer a coisa toda. Os Estados Unidos não enfrentam uma crise de deficit, e não a enfrentarão em prazo previsível. E enquanto isso temos uma economia fraca e que vem se recuperando de maneira excessivamente lenta da recessão iniciada em 2007.
Como enfatizou recentemente Janet Yellen, vice-presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos), um dos motivos principais para a recuperação lenta é que os gastos do governo vem sendo muito mais baixos no atual ciclo de negócios do que foi o caso em ciclos anteriores.
Deveríamos estar gastando mais, e não menos, até que estejamos de novo perto do pleno emprego; o bloqueio de gastos é o contrário do que um bom médico receitaria.
Infelizmente, nenhum dos partidos está propondo que a coisa seja simplesmente cancelada. Mas a proposta dos democratas do Senado é pelo menos um passo na direção certa, substituindo os cortes de gastos mais destrutivos --aqueles que incidiriam sobre os membros mais vulneráveis de nossa sociedade-- por aumentos de impostos sobre os ricos, e postergando as medidas de austeridade de uma maneira que protegeria a economia.
Os republicanos da Câmara dos Deputados, por outro lado, querem tomar tudo que há de ruim no bloqueio e torná-lo ainda pior; cancelar os cortes no orçamento de defesa, que efetivamente envolve muito desperdício e fraude, e substitui-los por cortes severos na assistência aos norte-americanos mais necessitados. Isso representaria um duplo abalo para a nação, reduzindo o crescimento e reforçando a injustiça.
Como sempre, muitos sabichões tentam retratar o impasse quanto ao bloqueio de gastos como uma situação pela qual os dois lados são igualmente culpados, e portanto ambos deveriam ceder.
Mas a realidade é que não existe simetria, aqui. Uma solução intermediária provavelmente envolveria uma combinação de cortes de gastos e aumentos de impostos; bem, é isso que os democratas estão propondo, mas os republicanos defendem intransigentemente que as medidas envolvam apenas cortes.
E já que os cortes propostos pelos republicanos seriam piores que os determinados pelo bloqueio de gastos, é difícil ver por que os democratas deveriam negociar, e não simplesmente permitir que o bloqueio aconteça.
E aqui estamos. A boa notícia é que, comparado às duas mais recentes crises econômicas autoinfligidas que sofremos, o bloqueio de gastos é peixe pequeno.
Se o limite da dívida federal não tivesse sido elevado, havia ameaça de caos nos mercados financeiros mundiais; se não tivéssemos chegado a acordo sobre o chamado abismo fiscal, haveria tantas medidas súbitas de austeridade que poderíamos ser arremessados de volta à recessão. O bloqueio, em contraste, vai provavelmente nos custar "apenas" 700 mil empregos.
Mas essa iminente mancada continua a ser um monumento ao poder das ideias verdadeiramente horríveis - ideias que toda a elite de Washington de alguma maneira aceitou representarem profunda sabedoria.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
Paul Krugman
Paul Krugman é prêmio Nobel de Economia (2008), colunista do jornal "The New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA). Um dos mais renomados economistas da atualidade, é autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados.