sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Eleitor - Eduardo Almeida Reis

Eleitor


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 31/10/2014

Escrevo estas bem traçadas linhas três dias antes do segundo turno, depois de conversar com uma brasileira de 45 anos, que me disse: “Meu filho me pediu para votar no Aécio, mas eu vou votar na Dilma, porque o governo dela foi muito bom para mim”. Nada lhe perguntei: sua declaração de voto foi espontânea. Fumava meu charutinho e fumando fiquei, mas desandei a philosophar: conheço a brasileira há muitos anos, tempo suficiente para saber que não pode votar.

Ela e mais 20, 40, 80 milhões de eleitores sem as mais mínimas condições de escolher, pelo voto, as pessoas que devem governar o país. Falei 80 milhões? Esquece. Li em algum lugar que o nosso eleitorado passa dos 140 milhões e afirmo sem medo de errar: cerca de 130 milhões não têm condições de eleger ninguém. Têm seus títulos e a obrigação de votar, mas não têm condições de escolher. Preciso explicar por quê?

Abstinência
Deu no Ancelmo: “A pastora Sarah Sheeva, de 41 anos, filha de Baby do Brasil e Pepeu Gomes, que está há mais de 10 anos sem sexo, vai fazer uma conferência para mais de 2.500 solteiros, no dia 1º de novembro, no Palácio das Convenções do Anhembi. Na pregação, Sarah ensina as mulheres a não serem ‘cachorras’, e os homens a serem ‘príncipes’.

No fim do culto, vai fazer um baile barroco com música gospel: ‘Quero acabar com essa cultura maligna de que solteiro não é feliz. No baile, homens e mulheres poderão fazer amizades’. É. Pode ser” – conclui o jornalista nascido em Frei Paulo (SE), na microrregião do Carira, onde os freipaulistanos nunca passaram um dia sem sexo.

Sarah Sheeva Cidade Gomes (Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1973), que não é feia, é uma cantora, compositora, arranjadora, escritora, palestrante e pastora. Nasceu com o nome de Riroca, mudado em 1992 para Sarah Sheeva inspirada na filha de Nina Hagen, Cosma Shiva Hagen. Em 1991, Sarah iniciou sua carreira nos bastidores musicais como figurinista. Depois se tornou desenhista de alta costura. Em 1991, quando ainda se divertia no leito, Riroca teve a filha Rannah Sheeva.

Pausa para explicar que a comadre veio me chamar para o almoço. Depois do café expresso, acendo um Cohiba e volto à abstinência sexual da bela pastora. Acho que ela fez muito bem quando trocou seu nome de batismo, que rimava com um substantivo feminino muito ligado ao sexo, cuja etimologia, segundo Nascentes, vem do tupi pi'roka 'calvo, pelado'.

Voltei! Constato que este suelto vai para 264 palavras, por isso preciso encurtar o episódio da tarde em que recebi visita domiciliar de uma leitora. Assentando-se no sofá da sala, a primeira frase da excelente patrícia foi a seguinte: “Estou sem trepar há 14 anos”. Fui salvo pela funcionária doméstica de carteira assinada, linda morena até hoje minha amiga, que não arredou seus lindos pés do pedaço, marcando território como se fosse namorada do patrão, que infelizmente nunca foi.

Dia 1º de novembro é amanhã. Ainda há tempo de comprar passagem aérea BH-Congonhas para curtir o baile dos solteiros no Palácio das Convenções do Anhembi. Sarah Sheeva deve ser um figuraço e o leitor já é um príncipe. Boa viagem.

O mundo é uma bola
31 de outubro de 475: proclamação de Rômulo Augusto, o último imperador romano do Ocidente. Em 802, Irene de Atenas, imperatriz bizantina, foi destronada por Nicéforo I, o Logoteta. Que se pode esperar de um Logoteta? Vou ao Google para descobrir que Logoteta ou Geniko significava O Vitorioso. Nicéforo I morreu em 811: bem feito! Quem mandou destronar Irene de Atenas?

Em 1411, assinatura do Tratado de Ayllón, que sela a paz entre os reinos de Portugal e de Castela. Quase todos os dias temos notícia de assinaturas de tratados selando a paz entre Portugal e Castela, sinal de que se amam. Em 1517 Martinho Lutero publica as 95 teses de sua Reforma. Ninguém perde por esperar as teses do bispo R. R. Soares, craque em desencapetamento total.

Em 1803, os Estados Unidos compram oficialmente o território da Louisiana, cujo lema é “Com Deus todas as coisas são possíveis”. Andei por lá tentando aprender inglês e voltei fluente em espanhol, que já esqueci.

Em 2010, Dilma Vana Rousseff é eleita presidente do Brasil. Em 2011, a população da Terra alcança a terrível marca de 7 bilhões. É muita gente: não cabe. Em 1345, nasceu o rei Fernando; em 1391, o rei Duarte; em 1838, o rei Luís I, todos de Portugal. Se o leitor tiver paciência para calcular os períodos de gestação, descobrirá o dia do ano em que as rainhas gritavam para seus maridos e senhores: “Estou a vir-me!”, “Mata-me de prazer!” Hoje é o Dia do Saci.

Ruminanças
“Deus tem ojeriza àqueles que, ensinando a sua lei, não a observam” (S. João da Cruz, 1542-1591).

A vida passa - Carlos Herculano Lopes

A vida passa


Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 31/10/2014


Há pouco tempo, voltando de Salvador, com o Aeroporto Luís Eduardo Magalhães lotado (a fila de embarque para Belo Horizonte estava imensa), meu cunhado, Armando Freire, virou-se para mim e disse com um sorriso maroto: “Vamos, seu Carlos, para a fila especial?”. Ou seja: aquela que privilegia, por direito, mulheres grávidas, portadores de necessidades especiais, maiores de 60 anos, e vai por aí.

Olhei para ele assustado. “Como assim, eu entrar naquela fila, se ainda não cheguei lá?”, pensei, sem assimilar bem a ideia, que a princípio me pareceu, no mínimo, apenas brincadeira. Em seguida, caindo na real, e como se me olhasse no espelho, como devíamos fazer todos os dias: cabelos brancos, uma ruguinha aparecendo aqui e ali, semblante meio cansado, aceitei a sugestão, e lá fomos nós.

E não é que deu certo?. Embarcamos sem maiores problemas, enquanto nossas mulheres, com as quais o tempo foi mais generoso, tiveram de amargar a fila, digamos assim – das pessoas normais. Dentro do avião, devidamente acomodados, rimos bastante da situação, e algumas horas depois estávamos em casa. Não sem antes meu cunhado, que às vezes tem umas tiradas filosóficas, dizer com o mesmo sorriso maroto: “A vida passa, meu mano, e temos de aproveitar enquanto ainda estamos numa boa...”.

De volta à rotina, depois de curtir aquelas férias na Praia do Forte, uma das mais lindas do litoral baiano, com direito, entre outros passeios, a conhecer o famoso Castelo de Garcia D´Avila, soberba construção dos primeiros tempos da colônia, me esqueci daquela sugestão do Armando de lançar mão (mesmo faltando só um pouquinho) dos privilégios reservados aos da “melhor idade”. E continuei, sem problemas, a entrar na fila “normal” do banco, pagar passagem de ônibus, ingresso integral em teatros, e assim por diante.

Se estou contando tudo isso, é para dizer também que, mesmo tendo me esquecido, talvez por pura conveniência, daquele episódio do aeroporto de Salvador, não adiantou muito. Pois a história, dia desses, voltou a se repetir, de maneira diversa, quando tomei um ônibus na Praça Sete. Completamente lotado, pois era horário de pico, eu iria ficar no alto da Avenida Afonso Pena, onde tinha um compromisso.

Numa poltrona, deitada no colo da mãe, uma criança chorava, enquanto essa, na maior paciência, tentava acalmá-la: “Estamos quase chegando, filhinha, estamos quase chegando”. Ao lado delas, uma moça falava no celular, como se mais nada importasse. Numa outra cadeira, um homem obeso, usando óculos escuros, ocupava todo o espaço, e o restante de nós, dezenas de pessoas, viajava em pé.

Foi então que um garoto de cabelos negros, que estava absorvido com a leitura de um livro, levantou de repente os olhos, voltou-se para mim e, como raras vezes ainda ocorre, disse gentilmente, fazendo menção de se levantar: “Quer se sentar aqui, senhor?”. “Muito obrigado, amigo”, respondi. Daí a pouco dei o sinal e desci no ponto da Praça Milton Campos. À noitinha, quando cheguei em casa, liguei para meu cunhado, contei a ele o episódio e, como tinha ocorrido na capital baiana, voltamos a dar boas risadas.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Maldade - Eduardo Almeida Reis

TIRO E QUEDA » Maldade

Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 30/10/2014
 (LELIS)


Obrou muito mal o vereador Paulo Adriano Telhada (PSDB-SP), o coronel Telhada, quando acusou o senador Eduardo Matarazzo Suplicy (PT-SP) de ter orientado uma jovem a acusar falsamente de estupro 14 policiais da Rota paulista. Matarazzo Suplicy disse que as acusações do coronel foram “irresponsáveis”.

Realmente, qualquer coisa que se diga do ex-marido da ministra da Cultura é irresponsabilidade e malvadeza, considerando que o referido senador é inimputável, um bobo que só consegue ser votado porque se candidata num país mais bobo que ele. Que se pode esperar de um senador da República que se deixa cavalgar por um candidato ao governo de São Paulo? Isso mesmo que deu para entender: deixou-se cavalgar, transportou o candidato Padilha às costas.

De outra feita, vestiu por cima da calça do terno azul-marinho uma calcinha feminina vermelha e se deixou fotografar. Merece piedade, coitado, como se não lhe bastasse a cruz de ser o pai do Supla.

Quebradeira
São tantos e tão assustadores os casos de falimentos de pessoas que conheço pessoalmente ou de ouvir falar, que passei a suspeitar dos quadros psi de aurumania. Freada de arrumação, como nos ônibus, para explicar que falimento é falência. Aprendi agora e tratei de usar, porque me amarro numa palavrinha aprendida, se bem que o substantivo falimento seja datado do século 13. Velho no idioma, novo para mim.

Dipsomania, sabemos todos, na rubrica psicopatologia é necessidade incontrolável de ingerir bebida alcoólica. Vem do antepositivo dips(o)- do grego dípsa,és “sede”, em que dipsose é sede incontrolável, dipsofobia é medo de beber e o negócio vai por aí. O dipsomaníaco tem a necessidade incontrolável de ingerir bebida alcoólica, assim como o aurumaníaco tem necessidade incontrolável de continuar ganhando dinheiro.

Não lhe basta uma fortuna suficiente para três ou quatro gerações; quer mais e mais, e nesta querença pode dar com os burros n’água. Creio desnecessário dizer que inventei aurumania a partir de ouro, aurum,i. Outro substantivo do século 13, ambição, forte desejo de poder ou riquezas, honras ou glórias, cobiça, cupidez, também se aplica aos que sempre desejam mais e mais. São raríssimos os muito ricos que se contentam com o que têm. E é nesta ambição desmedida que a porca torce o rabo, ou, como diria o guarda-costas de Cícero se falasse latim de carroceiro: ibidem porcina caudam torquet.

Rotina
Depois de muitos e muitos anos, certos procedimentos rotineiros como tomar banho e fazer a barba são chatíssimos. Presumo que os barbudos também se queixem do ramerrame de lavar suas barbas. O ramerrão diário toma tempo, que melhor seria aplicado noutras atividades desusadas. Agora, se me dão licença, vou tomar banho, fazer a barba e volto daqui a pouco, falou?

Voltei. Camisa limpa, calça no terceiro dia, chinelo de dedo, 40 minutos postos fora. E ainda não cortei as unhas das mãos, outra chatura de nove em nove dias. Você sabia que as unhas das mãos crescem cerca de 3mm por mês e as dos pés mais lentamente, numa taxa que varia de 1mm a 1,5mm por mês? Confesso que não sabia e fui ver no Google, site Mundo Estranho. Vejo no Houaiss que mm é símbolo de milímetro, que por sua vez é unidade de comprimento equivalente a um milésimo de metro.

O Livro dos Fatos, de Asimov, mais confiável que os sites da internet, tem qualquer coisa sobre o crescimento das unhas. Há 10 anos mandei digitar o livro para localizar no computador os fatos interessantes; hoje, cliquei unhas procurar, e só encontrei testemunhas. Mudei para unha procurar, mas encontrei propunha uma porção de vezes. O crescimento das unhas deve ter escapado ao brasileiro que ganhou os cobres digitando o livro.

Isto posto, vou cortar as lâminas duras, formadas de queratina, que me recobrem as últimas falanges dos dedos das mãos, agradecendo ao leitor pela atenção dispensada a este suelto ungueal.

O mundo é uma bola
Em 30 de outubro foi eleito o papa João VI no ano 701, e em 942 o papa Marino II, que pontificou durante quatro anos até morrer aos 46. Também foi conhecido como Marinho II, mais tarde considerado Martinho III, não me perguntem por quê. Em 1340, Batalha do Salado travada entre cristãos e mouros na província de Cádis, Sul da Espanha, unindo Afonso XI de Castela e Afonso IV de Portugal contra Yusef-Abul-Hagiag, de Granada, e Abul Hassan, de Marrocos.

Em 1431, foi assinado em Medina del Campo o tratado de paz entre Castela e Portugal, que põe fim ao conflito iniciado em 1383. Em 1501, dom Manuel I se casa com Maria de Aragão e Castela, ou Maria de Trastâmara y Trstâmara, de 18 aninhos, filha dos reis católicos Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão. Foi a segunda mulher de dom Manuel, o Venturoso. Não sendo portuguesa, não gritava “estou-me a vir”, mas teve uma porção de filhos. Hoje é o Dia da Decoração, do Balconista, do Comerciário, do Fisiculturista e do Ginecologista.

Ruminanças
“O divórcio entre a liberdade e a ordem produziu a catástrofe das liberdades humanas” (Juan Donoso Cortés, 1804-1869).



quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Matinais - Eduardo Almeida Reis

Matinais Ligo o televisor para o noticiário das 10 horas, que já começa com um incêndio ao vivo e em cores numa favela de São Paulo


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 29/10/2014



Café tomado, jornais lidos, um suelto de 286 palavras escrito e revisado, ligo o televisor para o noticiário das 10 horas, que já começa com um incêndio ao vivo e em cores numa favela de Sapopemba, Zona Sudeste da cidade de São Paulo. Pelo menos um morto localizado entre 90 barracos queimados, apesar dos esforços dos bombeiros com seus 21 caminhões. Logo em seguida, fico sabendo que aumentou o número de mortos pelos gases e cinzas expelidos por um vulcão japonês, notícia emendada com as imagens do novo divertimento encontrado pelos brasileiros que moram às margens do Rodoanel paulista: das pontes, passarelas e barrancos altos, os brincalhões jogam pedras nos veículos. Vidros quebrados, passageiros mortos ou feridos, veículos capotados que podem ser assaltados ou não: basta o divertimento.

Se o carro é blindado, talvez o vidro e a lataria aguentem os calhaus atirados. Não sendo blindado, é torcer para o fragmento de rocha dura furar o capô ou o teto num lugar que não faça vítimas. Divertimento/assalto que já existiu na Rio-Belo Horizonte, década de 70, quando morei por lá.

Aí, você pensa desligar o imenso televisor LED, quando surge uma notícia divertida: a arquidiocese paulista considerou válidos os casamentos, batizados, comunhões e missas celebrados durante dois anos pelo falso padre condenado por estelionato em São Paulo. Falante e articulado, ele atuou durante dois anos na Paróquia São Pedro e São Paulo situada no Jardim Guedala, região do Morumbi, aproveitando para tomar dos fiéis cerca de R$ 200 mil emprestados, além do pagamento pelas cerimônias que oficiava.

Melhor que isso: condenado a um ano e dois meses de reclusão, a pena foi substituída pela prestação de serviços à comunidade, isto é, serviços parecidos com aqueles que prestava no Jardim Guedala.

Hong Kong

Estabelecido o fato de que o elemento de composição pospositivo –cracia vem do grego krátos,eos,ous e significa força, poder, autoridade, compete ao caro e preclaro leitor, ao pensar em democracia, escolher entre o demo latino e o demo grego. Se grego significa povo, se latino é espírito maligno, demônio, diabo: daemon,ónis < gr. daímón,onos 'divindade, gênio, demônio, espécie de gênio tutelar' e Novo Testamento (Mateus 8,2; Marcos 5,12; Lucas 8,29).

Morro de pena dos estudantes honcongueses plantados nas ruas de Hong Kong sonhando com uma democracia que pode resultar, e muitas vezes resulta, num Lula, numa Dilma, num Collor, numa Osmarina transformada em Marina falando mandarim.

Esta minha mania de criticar sem apresentar soluções é muito feia, mas o fato é que não consigo ver luz no fim do túnel. Por mais que me esforce, vejo as coisas cada vez piores, como se fosse possível. E tenho como comparar, porque vivi outros tempos, fui criado numa casa com muro de um metro, sem cercas eletrificadas, entre as duas maiores favelas do Rio, a Catacumba e a Praia do Pinto.

Ninguém é obrigado a acreditar, mas a hoje famosa Rocinha, transformada em "comunidade" com UPP, fazia parte do Circuito da Gávea de Fórmula 1, onde corriam Fangio, Gonzáles, Chico Landi, Carlo Maria Pintacuda (1900-1971) e uma jovem francesa, o que levava o povão, irreverente como ele só, a falar em Pintacuda francesa.

Implicância

Estou ficando de uma implicância que vou te contar. Diante do televisor tiro o som da maioria dos entrevistados, além de fechar os olhos quando são muito feios. Tevê tem compromisso com a estética e as feiúras são tantas, que vivo sonhando com um sistema capaz de retocar automaticamente os visuais dos entrevistados, de mesmo passo em que lhes conserte as vozes. Deve ser muito simples. Já existem dispositivos que trocam as vozes dos entrevistados, quando não querem ou não podem ser identificados. Há dispositivos que escondem os focinhos dos bandidos protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Daí para a invenção de um negócio que conserte o visual e a voz deve ser muito mais fácil e um bilhão de vezes mais barato do que aquela sonda lançada para orbitar um cometa que anda próximo do Sol.

O mundo é uma bola

29 de outubro de 4004 a.C., data calculada pelo bispo irlandês James Ussher para o término da criação. Até hoje milhões de pessoas acreditam no criacionismo. Em 1810, fundação da Real Biblioteca, hoje Biblioteca Nacional do Brasil. Em 1945, deposição de Getúlio Vargas pelos militares do seu próprio ministério. Não adiantou nada: voltou cinco anos depois.

Em 1840, termina o bloqueio francês do Rio da Prata. Em 1916, primeira vitória do clube Vasco da Gama: 2 a 1 sobre a Associação Atlética River São Bento, enchendo de orgulho Marcia Lobo e Moacir Japiassu, que ainda não eram nascidos, mas já torciam pelo Vasco.

Em 1944 nasceu Nelson Motta, autor de bons livros e de bons textos jornalísticos. Em 1783 morreu Jean le Rond d’Alembert, filósofo, matemático e físico francês, que participou da primeira enciclopédia publicada na Europa. Hoje é o Dia Nacional do Livro.

Ruminanças


"Certos livros devem ser degustados, outros engolidos e uns poucos mascados e digeridos" (Bacon, 1561-1626).

Mosquitos herdam características de antigos parceiros sexuais da mãe

Pesquisa encontra evidências de que filhotes de mosquitos herdam características de machos com os quais a mãe copulou no passado


Roberta Machado
Estado de Minas: 29/10/2014



Em um estudo feito com mosquitos, cientistas australianos apontaram que filhotes podem carregar características de antigos parceiros sexuais da mãe, ainda que eles não tenham qualquer laço familiar. Essa forma de hereditariedade não genética, conhecida por telegonia, foi proposta pela primeira vez na Grécia antiga, depois esquecida e, agora, surge a primeira evidência de que a teoria pode estar correta.

“Geneticistas do século 20 rejeitaram muitas ideias e dados que eram considerados incompatíveis com as leis mendelianas, principalmente porque eles acreditavam que deveria haver um único mecanismo de hereditariedade, que era obviamente a transmissão mendeliana de genes”, ressalta Russell Bonduriansky, professor da Universidade de Nova Gales do Sul e um dos autores do estudo, publicado no periódico Ecology Letters.

O grupo de cientistas decidiu testar a velha teoria depois de pesquisar outra ideia abandonada pela ciência: a herança de traços adquiridos. Eles demonstraram que a dieta do mosquito Telostylinus angusticollis influencia não só o tamanho do macho na idade adulta, mas também o porte de sua prole. Os australianos resolveram, então, descobrir se o mesmo processo ocorria independentemente da fecundação do ovo. “Nós agora sabemos que há vários mecanismos de hereditariedade operando paralelamente, então precisamos revisitar várias ideias”, acredita Bonduriansky.

Os pesquisadores cultivaram um grupo de insetos normais e outro que recebeu doses extras de nutriente para ficar maior (veja infografia). As duas variações dos bichos foram colocadas para acasalar com fêmeas que ainda eram muito jovens para produzir ovos e, portanto, não podiam ser fecundadas. Algumas semanas depois, quando elas já estavam férteis, o experimento foi repetido com diferentes tipos de parceiros. As fêmeas que haviam acasalado com mosquitos maiores quando jovens foram colocadas com insetos menores, e as que tinham estado com os espécimes de tamanho normal foram emparelhadas com os machos mais crescidos.

Ao examinarem os filhotes que nasceram do experimento, os pesquisadores descobriram que o tamanho da prole era determinado pelo primeiro macho que havia acasalado com a fêmea, e não pelo inseto que de fato a fecundou.

Os cientistas australianos acreditam que, embora os primeiros machos não tenham transmitido seus genes para os filhotes, os ovos imaturos da fêmea absorveram substâncias presentes no líquido seminal, que poderiam ter influenciado no crescimento da prole. Apenas 5% do conteúdo ejaculado pelos machos é constituído de esperma. Sabe-se que há componentes, por exemplo, que fazem a fêmea colocar mais ovos, mas os cientistas ainda não conhecem todas as propriedades desse material, nem como ele pode afetar os filhotes.

EXCLUSIVO  Os autores do estudo não sabem dizer se a transmissão não genética de características é exclusividade dos mosquitos. Já existem evidências, por exemplo, de que a alimentação de um homem ou o uso de drogas possa afetar a saúde dos seus filhos e netos. Mas especialistas afirmam que esse processo é exclusivo de pais para filhos.

De acordo com o especialista em embriologia Wellerson Rodrigo Scarano, o sistema reprodutivo humano não permite a transmissão de características de um indivíduo a um filho de outra pessoa. “O sêmen humano vai sofrendo uma degradação durante o trajeto que o espermatozoide faz até o sítio de fecundação, que é a tuba uterina. Dessa forma, o meio para a movimentação do espermatozoide no trato genital feminino vai sendo substituído por secreções do próprio sistema genital da mulher”, ensina Wellerson, que é professor de embriologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Diferentemente dos mosquitos, as mulheres também só liberam um ovócito a cada mês, mantendo as células imaturas dentro dos ovários, protegidas de qualquer substância que chegue ao trato genital feminino. No caso dos insetos, as fêmeas levam ovos maduros e imaturos ao mesmo tempo, o que permitiria a influência não paterna em qualquer fase reprodutiva dos bichos.

Questionado sobre a controvérsia de resgatar uma teoria desacreditada há mais de 100 anos, Russell Bonduriansky descreveu os resultados como “bastante convincentes”. Mas alguns especialistas ainda têm ressalvas sobre a teoria de transmissão de características não genéticas. “Temos uma máxima em ciência de que afirmações sensacionais demandam dados sensacionais. Nesse caso, eu acho que ainda há mais a ser feito, mas a pesquisa tem potencial”, diz Reinaldo de Brito, professor de genética de populações da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e membro da Sociedade Brasileira de Genética (SBG).

Brito ressalta que os mosquitos contam com uma espermateca, onde armazenam o material genético de diferentes machos para produzir filhotes melhores. O mecanismo de controle da fêmea, de acordo com o especialista brasileiro, pode ter alguma influência na característica da prole. “Ela pode usar marcadores para definir qual macho é bom e se vale a pena gastar energia produzindo o filho dele”, explica Brito. “Acho que o modelo é teoricamente viável, mas não acho que isso seja definitivo.”

Transmissão

Mendel foi o primeiro a descobrir um conjunto de princípios relacionados à transmissão hereditária das características de um organismo a seus filhos e que se tornaram a essência da genética clássica. Ele estudou a hibridização de plantas para observar suas diferentes linhagens e como elas variavam de acordo com as características dos seus progenitores.

Saiba mais
Casamento criticado
A teoria de que os filhos poderiam ter características de parceiros anteriores da mulher recebeu o nome de telegonia e foi mencionada pela primeira vez pelo filósofo grego Aristóteles. Em 1361, a ideia foi usada como justificativa para criticar o casamento do príncipe Edward, de Gales, com Joana de Kent, que já havia sido casada. No século 18, foram registradas supostas evidências do processo no mundo animal, de uma égua que teria gerado um cavalo listrado porque havia cruzado anteriormente com uma zebra. O caso chegou a ser investigado pelo próprio Charles Darwin. No entanto, os estudos modernos de genética no século 20 levaram pesquisadores a descartar
a ideia. 


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Chatices - Eduardo Almeida Reis

Tiro e queda Depois de muitos anos frequentando reuniões e festas, você tem condições de fazer uma lista de chatos inesquecíveis

Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 27/10/2014
Chatices

É meio difícil que uma pessoa tenha consciência de sua própria chatura, mas há indícios que podem funcionar como chatômetro, instrumento para medir o valor do chato. Depois de alguns muitos anos frequentando reuniões e festas, você tem condições de fazer uma lista de chatos inesquecíveis. Guilherme de Figueiredo escreveu o Tratado geral dos chatos, livro que não esgotou o inesgotável assunto. 

Com o advento das aulas a distância, o brasileiro ressuscitou o adjetivo presencial, no português desde o século 14. Ainda há pouco, antes de ligar o computador, vi na tevê um jovem empresário dizendo que havia marcado um encontro presencial. Pois é: o encontro, ato de encontrar(-se), de chegar um diante do outro ou uns diante de outros, agora pode ser presencial ou a distância. O mesmo se aplica ao chato, que pode ser presencial ou informático.

Foi-se o tempo em que havia um Raymundo da Motta de Azevedo Corrêa poetando sobre a dor que mora n’alma de gente cuja ventura única consiste em parecer aos outros venturosa. Vivemos dias cuja ventura única de milhões de pessoas consiste no entupimento das caixas postais dos outros com e-mails absolutamente idiotas. São os chatos informáticos, que não excluem a renovação do time de chatos festeiros. Você vai jantar na casa de um grande advogado e topa com um chato que mastiga de boca aberta e fala sem parar. Asneiras, o que é mais nojento.
Quem me vê assim a falar dos chatos pode pensar que sou um amor de philosopho, mas tenho motivos para acreditar que sou chatíssimo. Minhas três filhas fogem do pai feito o diabo da cruz. Passam dias sem me telefonar. Uma ligação leva dois minutos e custa uma tuta e meia. Fazer o quê?

Redações

O melhor e mais caro colégio aqui da aldeia anda empenhado em fazer que os seus alunos de 12 anos escrevam textos complicadíssimos e frequentem cursos de redação, sobre os quais devo confessar que sou meio reticente. Pode-se ensinar a escrever? Antoine Albalat disse: “Pode-se ensinar a escrever a quem não sabe, desde que tenha o necessário para saber”, isto é, aptidão natural que a vocação denuncia. E Carmelo Bonet completa: “...ensina-se ‘a arte de escrever’ e cada um chega até onde pode, pois há graduações no que concerne ao domínio da expressão: desde a frase simplesmente correta da pessoa culta, até o impacto verbal do estilista”. Resumindo: a pessoa culta pode escrever bem, enquanto o estilista tem aquele algo mais que não se aprende na escola.

Muita gente compõe textos de 300, 500, 900 palavras sem erros de português, articulados, inteligíveis, respeitando a norma culta. Todo santo dia temos na mídia textos assim, geralmente insuportáveis. Isto porque o escriba faz tudo direitinho, mas lhe falta um negócio chamado talento. Pode até ser lido e citado por diversas pessoas, que não têm condições de distinguir o certo do excelente. Aí é que está: o escriba pode ser corretíssimo sem genialidade, como pode ser talentosíssimo sem a correção exigida pela norma culta.

Hippolyte Taine (1828-1893), em sua Filosofia da arte, avisa aos discípulos: “Em matéria de preceitos, não existem mais que dois; o primeiro é que se deve nascer com gênio, e isto é assunto dos vossos pais, não meu; o segundo aconselha a trabalhar muito ‘a fim de dominar a arte’: é assunto vosso e tampouco é meu”.

Ainda que de longe, tenho acompanhado os tais cursos de redação. Acho que pecam ao esquecer que a leitura de bons autores, ainda que pelas ortografias diferentes da recomendada pelo Acordo assinado pelo honoris causa da Silva, é fundamental na ensinança da escrita. O Enem não pede redações ecianas, machadianas, euclidianas, mas alunos que escrevam com alguma correção textos inteligíveis.

O mundo é uma bola

 27 de outubro de 312: Batalha da Ponte Mílvio, onde Constantino diz ter visto a frase In hoc signo vinces (Sob este signo vencerás) junto com as letras gregas XP (Chi-Rho, as duas primeiras letras de Cristo) entrelaçadas com uma cruz enfeitando o Sol. Foi através dessa visão que Constantino se converteu ao cristianismo. Em 1443, o promontório e as vilas de Sagres são doados por dom Pedro ao seu irmão, o infante dom Henrique. Humanista, diplomata, príncipe da Dinastia de Avis, Dom Pedro (1392-1449), duque de Coimbra e regente do Reino de Portugal, no quadro que nos chegou parece uma senhora gorda. Em 1429, casou-se com Isabel de Aragão numa união de amor, dizem os historiadores.

Em outubro de 1904: inauguração do metrô de Nova York; o de BH vem aí. Em 1912, inauguração do bondinho do Pão de Açúcar. Jovem repórter, fiz matéria  fantasiado de turista alemão, em companhia de amigas alemãs. Encontrei um brasileiro que falava alemão e passei apertado. Em 1951, primeira utilização de radioterapia com bomba de cobalto. Em 1982, as águas chegam às comportas do vertedouro de Itaipu. Em 1991, independência do Turcomenistão, onde se fala turcomeno.

Ruminanças
Os velhos sabem o que querem, mas não podem; os moços querem e podem, mas não sabem” (Marquês de Maricá, 1773-1848).

O PT chega ao quarto governo - Renato Janine Ribeiro

Valor Econômico - 27/10/2014


Reeleita, Dilma terá de reverter o estilo, delegando e dialogando mais. Precisará fazer política. Quererá? Conseguirá?


Foi duro, exigiu nervos de aço, mas o PT ganhou sua quarta eleição presidencial. Mas fica o risco de ter sido uma vitória de Pirro, para lembrar o rei do Épiro que vencia os romanos, porém a tal custo que alguém lhe disse: "Mais três vitórias como esta, e estamos perdidos"... Examinemos o que pode acontecer de agora em diante. Não será fácil para a vitoriosa.

Sua primeira dificuldade é com a mídia e a opinião pública. Uma comentarista de televisão teria dito há um tempo que a população (ou o povo) vai de um lado, e a opinião pública de outro. A "opinião pública" é contrária ao PT, mas o povo deu vitória a este partido em seguidas eleições. A mídia, o empresariado, a classe média sobretudo paulista, mas não só, destoam do que a maioria de pobres quer. A sociedade está dividida, com os mais vocais na oposição, os silenciosos (ou silenciados, como dizia Fernando Morais) a favor do governo. Não tivemos conflito dessa magnitude desde 1989, quando Collor venceu Lula com golpes baixos, mas na ocasião a mídia não fechou tanto assim com o vencedor. Pode Dilma vencer o ódio? A forma usual - que é chamar alguém da oposição para integrar o ministério - soa improvável.

Somem-se as dificuldades da presidenta com a política. Ela foi escolhida por Lula, dentre outros nomes possíveis, porque mostrou qualidades como gestora, além de ser a pessoa mais simpática no primeiro escalão à produção e aos empresários. Hoje é criticada pela gestão, a produção cresce pouco e o patronato não gosta dela. Um de seus problemas seria que não dialoga, manda.


Que medidas econômicas Dilma tomará?

Isso afeta as relações com os empresários, mas também com os políticos e com o próprio povo. São três dimensões autônomas nas quais é preciso fazer política, isto é, não dar ordens, mas escutar e dialogar. A dimensão dos empresários não é bem democrática, porque o peso econômico deles depende do capital - mas negociar com eles é uma imposição da realidade. Depois, temos os políticos eleitos que, por mais que se desconfie deles, representam o povo e nesta condição tomam parte nas decisões.

Já a conversa com o povo, que deixei em terceiro lugar, é a mais importante no plano democrático, mas foi desconsiderada pelo PT fora do período eleitoral. Aqui está o eixo das dificuldades de comunicação de Dilma. O problema não é gaguejar, não está na construção das frases. Está na capacidade de conquistar o povo. FHC ganhou a classe média, Lula arrasava no povão. Dilma ficou atrás de ambos. Para um governo popular, a comunicação não é mera técnica, é da essência das coisas. Mas o PT desistiu dela. Não tanto por falta de uma hipotética "lei de meios de comunicação", mas porque renunciou a disputar a hegemonia das consciências. Preferiu ganhar votos pelo aumento (necessário, justo) do consumo, em vez de dar nova vida ao ponto que fez sua glória na oposição: o do caráter ético da luta contra a miséria.

Dilma precisaria do beneplácito pelo menos do patronato e do Congresso, e de um apoio decidido - e organizado, senão orgânico - do eleitorado. Com nenhum deles, porém, priorizou o diálogo durante o primeiro mandato. Quererá mudar? Conseguirá?

Há também o ministério. Ao contrário da equipe de Lula, que brilhava, temos um grupo discreto, em que até as estrelas do governo precedente - como Celso Amorim - empalideceram. A presidente se disporá a delegar mais, a confiar mais? Parará de corrigir os auxiliares em público? Esta não é só uma questão de método. É essencial para que o governo funcione. Se os ministros não tiverem senso de iniciativa, pouco farão e isso repercutirá em todo o sistema.

Vamos ao espectro político.

Por um lado, temos uma oposição que, mesmo perdendo, sai das urnas reforçada. Nem que seja sobretudo pelo ódio. Cada lado armazena um estoque enorme de insultos ao outro. Parei de ver programas políticos porque me sentia diante de uma briga infantil. Os dois lados reclamavam do clima de ódio, mas cada um acusava o outro de ter começado. Parecia coisa de criança:

"Ele puxou o meu cabelo!"

"Mas ela deu primeiro um chute na canela!"

Foi um espetáculo triste - e infelizmente pode continuar.

Então, suponhamos que Dilma faça um gesto de grandeza na direção do outro lado. Será aceito? Em que consistirá? Hoje, a simples boa educação não basta. Não dá mais para desejar feliz aniversário a FHC ou levar todos os ex-presidentes no avião oficial para o enterro de Mandela. Será preciso efetuar concessões. Mas quais? O melhor seria comprar o que puder da agenda econômica da oposição. Não o aumento de juros, a redução de gastos públicos, com arrocho salarial e social - mas pelo menos uma desburocratização intensa, regras claras e estáveis para o investimento privado, fim de qualquer criatividade contábil. Mais que isso é difícil, porque seria renunciar aos fundamentos mesmos da divergência com o PSDB.

E há outro problema. Nossos governos de centro-esquerda se elegem com votos decisivos da esquerda, mas depois governam com os deputados necessários da direita. Em São Paulo, duas vezes o PT apoiou Mario Covas no segundo turno, para depois ele governar com o então PFL, que nas eleições apoiara a direita. Em sua campanha, Dilma contou com o apoio decidido de quem defende a liberdade gay - mas no primeiro mandato ela vetou o kit anti-homofobia. Para que lado irá? Uma possibilidade seria uma agenda avançada na questão dos costumes, abrindo-se para a esquerda, e um gesto de conciliação para a direita empresarial, que está mais interessada na economia do que em questões comportamentais. Mas isso exigirá mais habilidade e gosto políticos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. 
E-mail: rjanine@usp.br


domingo, 26 de outubro de 2014

A nossa juventude - Martha Medeiros

A nova juventude - Zero Hora 26/10/2014






O que não falta é frase satirizando a primeira etapa da vida. Exemplo: A juventude é um defeito facilmente superável com a idade. Outro: A juventude é uma coisa maravilhosa, pena desperdiçá-la em jovens. Quem ultrapassou essa fase dourada hoje olha para ela com certo desprezo. Não de todo equivocado: a maturidade, de fato, se não é nosso período mais fértil, certamente é o mais sabido. Algum benefício tinha que trazer essa tal passagem do tempo.
No entanto, em vez de fazer coro com a soberba habitual dos maduros, vale dar uma espiada mais generosa para a garotada. Afora os neorretardados que proliferam nas redes esbanjando pobreza de espírito, a geração atual tem uma postura mais humanizada em relação a questões importantes da vida. Vale a pena escutá-los.
O tema da homossexualidade, ainda debatido à exaustão na mídia, já saiu de pauta entre os adolescentes. Nada mais natural do que meninos e meninas namorarem parceiros do mesmo sexo. Ser favorável ou desfavorável à causa gay? Concordo com eles: chega a ser constrangedor a gente se declarar a favor ou contra o que não nos diz respeito. É muita arrogância.
Quanto à busca por uma profissão, mudanças visíveis também. O dinheiro continua sendo uma preocupação, mas já não ocupa o topo das paradas. O que se deseja é fazer diferença para a sociedade, trabalhar no que se gosta, personalizar sua atuação, deixar marcada uma ideia, uma consciência, um caminho diferente, um novo olhar. Nem que para isso se invente uma profissão que nunca existiu, que se formalizem atividades que antes não eram consideradas. Estudar segue fundamental, mas a sequência colégio-vestibular-faculdade vem ganhando bifurcações. Se a felicidade não estiver na vida sólida e estável que os pais sonharam, paciência. Os sonhos dos velhos terão que se adaptar a uma realidade menos regrada.
Sim, ainda existem os adolescentes convencionais, que sonham com casamentos convencionais e empregos convencionais e que querem enriquecer, consumir e ser “alguém”. A diferença é que esse “alguém” padrão, que se amparava em hierarquias para estabelecer juízos de valor, não representa o jovem moderno que quer construir uma sociedade mais horizontalizada. A noção de riqueza está mudando de foco: ir para o trabalho de bicicleta pode dar mais status a um profissional do que conquistar uma vaga no estacionamento reservado aos patrões.
Outro dia falava sobre tatuagens com duas garotas e me peguei aplicando o velho discurso a respeito do cuidado que elas deveriam ter antes de tomar decisões definitivas. Foi quando me dei conta de que até o definitivo mudou de configuração. Elas não veneram o “pra sempre” – o que acho ótimo, mas então por que fazer uma tatuagem? Simplesmente para homenagear uma etapa da vida. Não haverá arrependimento se o assunto não for levado com tanto drama. Tatuagem deixou de ser uma condecoração vitalícia. Nada mais é vitalício.

Basta que seja sustentável.

Depressão - Eduardo Almeida Reis

Depressão

Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 26/10/2014


Sempre que escrevo “o brasileiro” não me refiro a todos os patrícios e patrícias, mas só a 95% deles sem a chatura da explicação que os locutores nos davam quando falavam das pesquisas eleitorais. Isto posto, devemos todos convir que o brasileiro (95%) entende de uma porção de assuntos e tem solução para quase tudo: futebol, trânsito, clima, depressão...

Ninguém se acanha de falar sobre depressão, já porque passou pelo problema, já porque conhece gente deprimida. É do conhecimento universal que cavalheiros e damas ilustres vivenciaram o “cão negro” da depressão, expressão popularizada por ninguém menos que Winston Churchill. O distúrbio psíquico que se exprime por períodos duráveis e recorrentes de disforia, concomitantemente com problemas reais ou imaginários ou com experiências momentâneas de sofrimento, podendo ser acompanhado de perturbações do pensamento, da ação e de um grande número de sintomas psiquiátricos, não deve ser confundido com a tristeza. Tristes ficamos com a derrota do nosso time de futebol, mais tristes ainda quando nosso time cai para a Segunda Divisão e muito mais tristes com a perda de pessoas queridas. Tristezas são normais e louváveis; depressão é outro departamento.

Contudo, no Brasil de 2014 há outro sentimento justificado, que se confunde com a depressão. É a constatação do estado a que chegou este país: crescimento zero, violência nunca vista, roubalheira inacreditável, falência múltipla dos órgãos do governo com reflexos imediatos em todos os seus cidadãos, índice de Gini, IDH – tudo! Muito doente, no caso, é o brasileiro que não fica triste, ressalvados aqueles que roubaram adoidado e têm passaportes europeus “pensando nos filhos”, como disse a galega casada com o carismático.

Hotelaria
Depois de 10 meses de reformas e expansão, foi reaberto em Paris o Plaza Athénée, hotel que o jornalista Lauro Diniz, mineiro de Paraopeba, chama carinhosamente de Plazá, pronúncia correta ensinada por sua Danielle. Depois de passar dois dias hospedado na Pensão da Bá, em Conceição do Mato Dentro, jurei nunca mais opinar sobre hotéis e hotelaria, mas me dizem que o hotel parisiense é merveilleux, tem o Dior Institut, um spa da Dior, e dois restaurantes Ducasse, um deles horrível, com seus bancos redondos espelhados, decoração que faria feio até em Nova Iguaçu (RJ).

Os funcionários são treinados para agradar aos hóspedes e os preços são compatíveis com os petistas e os diretores da Petrobras. O Plazá pertence ao filho de Al-Marhum Kebawah Duli Yang Maha Mulia Maulana Paduka Seri Begawan Sultan Haji Omar Ali Saifuddien Saadul Khairi Waddien Ibni Al-Sultan Muhammad Marhum Jamalur Alam II, isto é, pertence ao sultão Haji Hassanal Bolkiah Mu'izzaddin Waddaulah ibni Al-Marhum Sultan Haji Omar Ali Saifuddien Sa'adul Khairi Waddien, nascido em 1946, educado na Royal Military Academy Sandhurst (RMAS), da Inglaterra, e apita no Brunei, país asiático de 5.765 quilômetros quadrados e 400 mil habitantes, no qual se fala malaio e há gás e petróleo para dar e vender. Seu palácio tem mil quartos e a coleção de automóveis mais de mil veículos padrão Mercedes pra cima. A renda per capita é de US$ 51 mil, a 5ª do mundo, e o IDH 0,852, muito alto, o 30º do planeta.

O sultanato do Brunei, que data do século 14, tem o seu lado brasileiro. Em 1998, o príncipe Jefri Bolkiah, irmão caçula do sultão, foi afastado das empresas estatais por má administração e corrupção com a falência da estatal Amedeo Development Corporation, prejuízos de US$ 15 bilhões e 23 mil desempregados. O sultão, um dos homens mais ricos do mundo, viu sua fortuna cair de US$ 40 bilhões para US$ 10 bilhões, mas ainda lhe resta uma côdea de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima. Processou o irmãozinho, que desde 2004 vive no exílio.

O mundo é uma bola
26 de outubro de 1769: alvará português proíbe as devassas sobre os concubinatos, no que faz muito bem. A união livre entre um homem e uma mulher não casados foi feita para ser vivida, não devassada. Em 1905, reconhecimento da independência da Noruega pela Suécia.

Em 1909, nascia Afonso Eduardo Reidy, brilhante arquiteto brasileiro, padrão Niemeyer e Gustavo Penna. Em 1916, nasceu François Mitterrand, ex-presidente francês. Sua viúva adorava Belo Horizonte e Itabirito, onde tinha bons amigos. Dizem que era mais esquerdista que o marido, cavalheiro que, por sua vez, teve uma filha fora do casamento, talvez inspirado no alvará português de 1769, que proibia as devassas sobre os concubinatos.

Em 1919, nasceu Mohammad Reza Pahlavi, último xá do Irã: tinha o aplomb que falta aos aiatolás sanguinários. Em 1942, nasceu Milton Nascimento, grande compositor e cantor brasileiro. Sempre achei que o Bituca fosse mineiro, mas vejo na Wikipédia que ele nasceu no Rio.

Em 1947, nasceu Hillary Clinton, mulher de Bill, ex-primeira-dama dos EUA e mãe de Chelsea, que é vegana e vem de lhe dar uma neta. Hoje é o Dia do Trabalhador da Construção Civil.

Ruminanças
“Os que vencem, seja lá de que modo, nunca disso se envergonham” (Maquiavel, 1469-1527). 

EM DIA COM A PSICANáLISE » Trilhamentos do desejo

Regina Teixeira da Costa
reginacosta@uai.com.br
Estado de Minas: 26/10/2014 



“Na medida em que o homem é apanhado na dialética significante, há alguma coisa que não funciona... Há resíduo, portanto. Como se apresenta ele?... como se apresenta este para além...? A experiência prova que ele se apresenta. E é isso que chamamos desejo.” Jacques Lacan, 1958.

Nas formações do inconsciente temos o desejo recalcado, esquecido, buscando uma via de acesso ao consciente. Nessas formações, o que se apresenta da ordem do desejo se faz passar de algum modo.

Há, então, trabalho psíquico, que se dá pelas operações que franqueiam o caminho do que se forma, de-formando-se; fazendo trilhas, cavando pegadas na estrutura de linguagem do inconsciente.

Nas formações, o recalcado retorna pelos trilhamentos no sintoma, no ato falho, no lapso, no chiste (dito espirituoso, piada), no sonho, na transferência, nos apontando a ética de nossa prática clínica, que é aquela de nos orientarmos pelo que nas marcas e nas trilhas se revela como causa de desejo.

Há também outro ponto crucial para a psicanálise, que é a formação do analista. Esta implica em um longo percurso de elaboração pelas formações do inconsciente, posto que o analista é produzido em sua análise no trabalho com essas operações.

Lacan escreveu, no seminário sobre a angústia, que abordar o desejo é empreitada nada insignificante e que essa empreitada não se realiza num único passo.

A 19ª Jornada do Aleph – Escola de Psicanálise pretende abordar a complexidade das questões relativas aos trilhamentos do desejo nas formações do inconsciente. Um trabalho de muitas voltas por meio da interlocução que abre a elaboração de alguns pontos e ao mesmo tempo relança outros, sempre na lógica de um saber a se concluir. Como no movimento próprio do desejo, que, ao passar, não se realiza, mas relança-se continuamente, produzindo suas marcas.

Este é o convite feito pela Comissão da Jornada, formada pelos psicanalistas José Eugênio de Carvalho Gomes, Maria Inez F.L de Figueiredo, Regina Bueno Guerra, Sandra de Faria Pujoni (coordenação), Sílvia G. Myssior e Valéria S. Brasil.

Recomendo para quem quer saber um pouco mais sobre o desejo inconsciente, que não tem nada a ver com vontades ou mesmo caprichos. Saber mais sobre o desejo conduz o sujeito a lugares antes insuspeitados.

19ª JORNADA DO ALEPH  ESCOLA DE PSICANÁLISE
Dias 7 e 8 de novembro. Museu Inimá de Paula, Rua da Bahia, 1.201, Centro. Informações: Secretaria do Aleph – Escola de Psicanálise, Rua Ceará, 1.431, sala 1.205, Funcionários, (31) 3281-9605.
 E-mail: aleph.psicanalise@terra.com.br e www.aleph.psc.br.

sábado, 25 de outubro de 2014

A Hora do Povo - João Paulo

OLHAR » A hora do povo


Eleição não encerra o compromisso com democracia. É um passo importante, mas é apenas o primeiro


João Paulo
Estado de MInas: 25/10/2014



Um programa completo de governo traduzido na linguagem estética e política das ruas (Uelsei Marcelino/Reuters)
Um programa completo de governo traduzido na linguagem estética e política das ruas

O Brasil chega hoje, véspera do segundo turno da eleição presidencial, com o mais acirrado cenário de disputa desde o restabelecimento da democracia no país. O que é ótimo. Apesar da guerra de nervos e das interpretações que falam em divisão e ódio de classes, a situação precisa ser festejada: os cidadãos sabem o que querem. E, de forma plural e salutar, desejam coisas muito diferentes.

É disso que trata uma eleição, da disputa de projetos, ancorados no desejo dos cidadãos e na história de quem os propõe. O dissenso, nesse momento, é única garantia democrática que temos. Dele advém a governabilidade, por um lado, e a oposição responsável, por outro. A comemoração da vitória ou o lamento da derrota serão apenas a sombra da responsabilidade que deve se seguir aos resultados de amanhã.

O fato de a reforma política ter entrado com tanta força nessa eleição é também sinal de maturidade. Impulsionada pela sociedade em junho do ano passado, nas ruas de todo o país, a descrença com as regras que hoje viciam o jogo político se tornou ponto de honra, uma convocação ao compromisso com a mudança.

Sem uma profunda transformação das regras institucionais no campo da política, aí incluídos o financiamento e o papel dos meios de comunicação, o risco é de perpetuação de tudo que foi atacado como perverso na cena política. A reforma, na verdade, é a única saída para o fim do “pemedebismo” que tomou conta da política nacional, conforme analisou o cientista político Marcos Nobre.

A democracia existe exatamente para isso, dar capacidade política de exercício da vontade da maioria, traduzida em expansão de direitos, competência no exercício da administração e na abertura à participação na vida pública. A democracia não se encerra com a eleição, começa com seus resultados.

Com relação aos projetos em disputa, como foi repetido inúmeras vezes durante a campanha, o Brasil viu, da redemocratização para cá, o surgimento e amadurecimento de duas possibilidades: o neoliberalismo e o neodesenvolvimentismo. Cada lado tem sua cota de ideologia, perspectiva política, ação administrativa, entendimento da participação popular e prioridades. Para a primeira, o Estado mínimo; para a segunda, o papel indutor e popular.

Não é mais hora de repisar os argumentos que, de certa maneira, trouxeram de volta a divisão entre esquerda e direita na política brasileira. Não é bom ter medo das palavras. Ainda que muitos defendam que não faz mais sentido falar nesse tipo de polaridade no mundo contemporâneo, a campanha deixou claro que os conceitos não são apenas operacionais, como elucidativos.

Esquerda e direita têm projetos para a saúde, educação, habitação, inflação, moradia, segurança, participação popular, inclusão social, políticas sociais, direitos humanos e cultura, entre outras. São propostas distintas, cada qual com sua racionalidade. Há, por exemplo, um jeito de prover saúde que se aproxima dos valores igualitários, outra que atende aos interesses do mercado. Cabe ao cidadão, por meio das campanhas dos candidatos, conhecer e debater as propostas, traduzindo sua compreensão e desejo em voto.

O outro fato definidor do voto é a trajetória dos candidatos. Por isso a ideia de desconstrução, tão atacada durante essa campanha por um falso moralismo, tem seu potencial politizador. É preciso saber com quem estamos lidando, já que o testemunho da imprensa não se mostrou imparcial. O jornalismo brasileiro voltou ao século 19 em sua paixão ideológica inequívoca.

Este é o lado A da democracia.

O lado B é a tradução do resultado eleitoral em ações de governo. Elas devem ser exercidas por meio de políticas públicas, por um funcionalismo profissionalizado, com a provisão de serviços de qualidade, gerência eficiente dos projetos prioritários e controle severo dos desvios.

O lado mais complexo da democracia não é a escolha do governante, mas a realização do desejo popular em formas legais, legítimas e competentes. E, o que é essencial, passível a todo tempo de crítica, fiscalização e controle. Democracia supõe ordem, mas não vive nem se desenvolve sem conflito.

Universal
Mas há uma questão fundamental: os projetos, ainda que diferentes, precisam ser alimentados pela mesma lógica democrática que sustenta o sistema. Não se pode, por exemplo, julgar que é legítimo lançar mão de ideias e propostas que atentem contra as conquistas da humanidade. No campo da democracia não há espaço para o preconceito, para a violência contra minorias, para a discriminação de qualquer natureza.

O mesmo princípio vale para os direitos sociais. Não é democrático, no atual estágio da sociedade brasileira, por exemplo, propor que questões como educação, saúde e direitos trabalhistas sejam tratadas com a lógica do mercado. Direitos não se traduzem em serviços. Estamos no estágio superior da consagração dos direitos civis, não da reivindicação de ações tópicas ou compensatórias.

Sempre que se defende a retirada do Estado do campo dos direitos constituídos (ainda que com a marca das parcerias privadas ou chanceladas pelo selo falso da “modernização”), seja para dar espaço ao mercado, seja para justificar a regressão nas regras – como flexibilização dos direitos conquistados pelos trabalhadores) –, é preciso alertar para o déficit de democracia envolvido no processo.

A reinvindicação de direitos sociais já conquistados, em todos os campos, passa hoje por um momento de universalização que não permite mais retrocessos individualizantes. Não se pode barganhar algo que é da esfera da sociedade para o âmbito restrito da pessoa. Os direitos sociais não são concessões ao cidadão, mas princípios de funcionamento da sociedade.

Essas afirmações, aparentemente óbvias, na realidade apontam para um risco que parece rondar o mundo, definido pelo pensador francês Jacques Rancière em seu livro, recentemente lançado, O ódio à democracia. Ainda que seja constituída como um valor de exportação pelos países mais ricos do mundo, a democracia vem sendo submetida a um juízo de valor que, na maioria das vezes, se traduz como certo horror ao povo.

Há um inegável mal-estar dos privilegiados, não apenas no Brasil (que assistiu às cenas patéticas de desagrado com a chegada dos trabalhadores aos aeroportos, tomado como invasão de seu território quando a venda de passagens saltou de 30 milhões para mais de 100 milhões), mas em todo o mundo. Com a desqualificação dos mais pobres, as políticas que se destinam às maiorias foram consideradas populistas e as que defendem as minorias tidas como autoritárias.

Essa situação evidencia um duplo prejuízo, que atenta por um lado contra o povo para em seguida atacar os direitos humanos. A chegada do povo ao consumo, à cidadania, aos espaços sociais antes vedados e à política, não apenas como mais um voto, mas como um índice de participação, é a melhor notícia da democracia brasileira dos últimos anos. Mesmo que sociólogos experientes ainda teimem em desqualificar suas escolhas, numa melancólica memória dos tempos do voto censitário. Saudades da casa-grande.

A retomada das discussões em torno da participação direta (prevista na Constituição Federal, como muitos se esquecem), pode ser o elemento decisivo para derrotar o “ódio à democracia” com uma dose, digamos, insolente e participativa de democracia popular, que tanta falta faz ao mundo.

E é em nome dessa requalificação política, com suas consequências em termos de projeto de governo, que a opção pela candidatura de Dilma Rousseff (PT) se afigura mais democrática que a de Aécio Neves (PSDB). Há um índice de ampliação, de escala, que aponta para esse novo campo democrático que vem desafiando os pensadores políticos em todo o mundo: como democratizar a democracia num cenário de ameaça da regressão popular por razões ideológicas. A oligarquia satisfeita e pacífica sempre fez da paixão democrática um campo de realização individual, onde o bem comum não estava presente. São as democracias sem povo. Aqui, a história é outra.

Escala
O Brasil mudou muito. A sequência dos governos do PSDB e do PT formaram um momento histórico de transformação, sem dúvida, mas que incidiu de forma diferenciada na vida da maioria da população nos dois tempos de governo. De tal maneira a sociedade brasileira foi formada sob o tacão da desigualdade que só muito recentemente passamos a nos horrorizar de verdade com as marcas do passado. Mesmo assim, nem todos. Os mais iguais ainda rondam.

A saída que permitiu, no âmbito psicológico, que suportássemos tanta injustiça social foi certo entorpecimento da culpa em nome de forças que iam além de nossas escolhas. Assim, criou-se uma falsa sensação de que a vitória sobre a desigualdade seria resultado de um conjunto de ações que somariam a conquista da riqueza social, por um lado, com o empenho individual, por outro. Numa mão o crescimento do bolo, ainda que à custa do trabalhador que não tinha sua fatia; de outro o reconhecimento dos talentos, numa ideologia meritocrática de fancaria, que nada mais fez que naturalizar os privilégios.

É preciso uma inflexão destemida em direção ao combate à injustiça social. E, no estágio brasileiro de séculos de concentração, isso impõe uma agenda de políticas de intervenção do Estado na regulação e na oferta de condições de realização aos mais pobres, tendo como parâmetro a noção de igualdade.

É preciso investir mais onde falta mais. Como se trata de uma dívida histórica de longo prazo, o ideário liberal não é capaz, por si próprio, de cumprir sua ficção igualitária, mesmo em longuíssimo prazo. Os privilégios não são um acaso em nossa formação, mas uma ferramenta.

Por isso se torna importante, nesse momento, seguir políticas públicas que tenham escala, que sejam exercidas na casa dos milhões. A dívida social é antiga, grande e profunda. Na educação, por exemplo, é isso que apontam números como a inclusão de mais 1,5 milhão de jovens na universidade; o investimento em escolas técnicas (também num patamar de crescimento que ultrapassa quatro dígitos de crescimento); o acesso de jovens ao melhor ensino do mundo, por meio de bolsas em universidades de ponta; a mudança das formas de seleção para o ensino universitário; a política de cotas; a linha de crédito real para financiamento da formação.

No campo da saúde, além do incremento de gastos no setor, é preciso destacar a inclusão de 50 milhões de pessoas na atenção médica, com a contratação de 14 mil médicos estrangeiros, que cobrem um vácuo deixado pelo modelo liberal de formação de profissionais de saúde brasileiros. A criação de novos cursos de medicina vai impactar ainda o mercado, direcionando recursos para as áreas de atenção básica, clínica e medicina social. Deixada ao sabor do mercado, a saúde exclui pelos altos custos, discrimina pela porta de entrada, e se torna limitada tecnicamente na opção pelo uso intensivo de tecnologia e pelo modelo de formação distanciado das necessidades da população.

Saúde e educação são apenas sinais mais expressivos da tradução dos intentos efetivamente populares. Outros dados podem ser agregados, como a diminuição do índice de desemprego, aumento real do salário mínimo, melhoria do Índice de Desenvolvimento Humano, retirada de milhões de pessoas da miséria extrema, crescimento da classe média.

Mesmo assim, esses e outros indicadores apenas tangenciam a desigualdade social brasileira. A eleição de amanhã, nesse sentido, precisa ser compreendida como uma ação para o futuro, como um aprofundamento no caminho que se mostrou historicamente mais viável para a universalização de direitos e para a conquista da igualdade. O outro caminho é a retomada, em via regressiva, de um trajeto que é limitado em suas próprias bases pela ação livre do mercado.

Crescer, distribuir renda, respeitar direitos sociais, ampliar a participação popular, incluir, proteger os direitos humanos, melhorar os serviços públicos, representar de forma altaneira os interesses nacionais no cenário internacional e combater sem tréguas a corrupção. A esses itens se resumem os dois projetos.

O que os diferencia, e parece óbvio, ponto a ponto, nas propostas dos dois candidatos, é o quanto de democracia cada um desses aspectos carrega. E democracia não pode ser apenas a condição de possibilidade do voto. Precisa ser a expressão de sua verdade. É disso que trata uma eleição: do dia seguinte.

Ronronar - Eduardo Almeida Reis

Ronronar

Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 25/10/2014


Em inglês deve existir um verbo que, traduzido para o português, tenha o sentido de ronronar: “fazer rom-rom (o gato)”. Procurando ronronar no idioma dos Pitts, aqui nos dicionários de que disponho, encontrei quatro verbos. Nenhum dos quatro tem tradução que se aplique ao sentimento de alegria de algum ser que não seja o pequeno mamífero carnívoro, doméstico, da família dos felídeos (Felis catus), que descende do gato selvagem encontrado na África e Sudoeste da Ásia (Felis silvestris libyca).

Nossos jornais traduziram e publicaram a notícia britânica: “Ela ronronou pelo telefone. Nunca ouvi ninguém tão feliz” – disse David Cameron, primeiro-ministro britânico, contando a reação da rainha Elizabeth II ao ser informada da vitória do “não” no plebiscito sobre a independência da Escócia.

Ora, é inadmissível que um primeiro-ministro britânico diga que a rainha Elizabeth II ronrona. Portanto, deve ter usado outro verbo para exprimir alegria, satisfação, verbo que permite tradução para o rom-rom, expressão de alegria do pequeno mamífero doméstico.

No capítulo das vozes dos animais, Houaiss diz que os gatos podem bufar, berrar, chorar, fungar, miar, rebusnar, regougar, resmonear, roncar, ronronar, roufenhar e zurrar. Teria Elizabeth II miado, regougado ou resmoneado? Não acredito.

Deificar

É feio falar mal dos mortos, que já não se podem defender. Por outro lado, ninguém precisa deificar, endeusar, atribuir natureza divina a um cavalheiro cheio de defeitos como todos nós. Dia desses, escrevendo sobre conhecido cronista e compositor, um fuinha metido a cronista transformou o finado num deus mal-amado, prova de que não o conheceu.

Conheci-o e admirava o seu texto, bem como as suas músicas. Ainda me lembro de que, logo depois de sua morte, passei uma semana jantando nos restaurantes que ele citava. Nunca fui seu amigo e só troquei duas palavras com ele, no tempo em que namorou a dona de um restaurante próximo de minha casa. Devo ter sido um dos primeiros a ouvir a letra de uma de suas músicas, composta no dia em que voltou do Nordeste de avião em companhia da restauratrice. Jantei lá naquela noite e ela me falou da música mostrando o rascunho da letra num guardanapo de avião.

Estabelecido o fato de que conheci duas de suas namoradas – possivelmente apaixonadas pelo seu imenso talento, porque era cavalheiro muito feio – devo dizer que de santo ele não tinha nada. Facadista contumaz, sempre que conhecia um leitor, que se dizia admirador de suas crônicas, aproveitava a oportunidade para pedir uns cobres emprestados, prometendo pagar na manhã seguinte. Nos valores atuais, algo assim como cinco mil reais. Só de amigos meus foram dois casos, que ficaram na saudade do dinheiro que emprestaram.

Palavras
“CBF é espinafrada pela Fifa em caso de mão na bola”, manchetou o provedor Terra, mostrando que o mancheteiro tem estrada e deve ser idoso, porque o verbo espinafrar, regionalismo brasileiro, tem sido pouco usado nos últimos anos. Fosse mais novo, o manchetador usaria o verbo esculhambar, inventado pelo português do Brasil no século 20. O dicionário inFormal diz que mancheteiro é “pessoa que é cheia de manias irritantes, e sempre procura um defeito nas coisas e pessoas”, o Google não tem manchetador e a busca no vocabulário da Academia Brasileira de Letras informa que mancheteiro e manchetador não existem. Isto é, não existiam. Passam a existir a partir da coluna de hoje: “jornalista que faz manchetes”.

O mundo é uma bola
 25 de outubro de 1521, Maria Pacheco se rende, entregando Toledo em honrosas condições às tropas de Carlos V, encerrando a Guerra das Comunidades de Castela, também conhecida como Revolta dos Comuneiros. Há quem diga que foi a primeira revolução moderna. Procurei saber algo mais sobre Maria Pacheco e tudo que encontrei foi o seu cognome Leoa de Castela. Em 1533, Carlos V nomeia Fernández de Oviedo primeiro cronista das Índias. Em 1555, Carlos V abdica o trono imperial e de suas posses alemãs em favor do irmão Fernando. Fui procurar os três Carlos V e encontrei o mesmo quadro, possivelmente pintado por Ticiano: cavalheiro magro, barbudo, sentado numa poltrona.

Em 1636: Johan Maurits van Nassau-Siegen larga do Porto de Texel a caminho de Recife (PE), onde chegaria em 23 de janeiro de 1637. Era magro, muito claro, protestante, usava bigodes e cavanhaque pontudos. Foi educado na Universidade da Basileia, destoando, portanto, de muitos governadores de Pernambuco nos últimos séculos e de um presidente da República nascido no mesmo estado.

Em 1671, Giovanni Domenico Cassini descobre Jápeto, lua de Saturno, sobre a qual nunca ouvi falar e presumo que o leitor também não. Por isso, é bom ficarmos sabendo que, segundo a tradição de Hesíodo, Jápeto ou Iápeto era um dos 12 Titãs clássicos, filhos de Gaia e Urano.

Em 1993, pesquisadores da Universidade George Washington, USA, realizam a primeira clonagem de embrião humano. Em 2001, a Microsoft lança o primeiro e saudoso Windows XP. Hoje é o Dia da Construção Civil, da Democracia, do Dentista, do Sapateiro e do Macarrão.

Ruminanças
“Se os macacos chegassem a sentir tédio, poderiam tornar-se gente” (Goethe, 1749-1832).

ARNALDO VIANA » Procura-se um lar

Estado de Minas: 25/10/2014


 (Arnaldo Viana/EM/D.A PRESS)
“Ufa! Mais um pedaço da jornada vencido. Jornada? Nem sei mesmo aonde vou. Se vou, se fico. Ah, vou me apresentar, mas, por favor, não caçoe de mim. Dê-me o nome que quiser. De onde venho? De Muzambinho, lá no Sul de Minas. Andei, andei de verdade esses 420 quilômetros e se não achar pouso, vou caminhar mais e mais. Desandar, não desando. Você sabe o que houve na minha cidade, não sabe? Foi notícia em tudo quanto é canto. O prefeito, de coleação com a vereança, botou uma lei para expulsar galinha, pato, peru, porco, tudo que é bicho de quintal para fora das casas. Diz ele que a gente causa incômodo. Dia 16 agora foi o último dia para o povo esvaziar as moradas da bicharada. Matar para comer ou botar pra fora. Desobediência virava multa.

Eu morava no terreiro de uma senhora, idosa, com outras criações. Tenho o orgulho de dizer que ela nunca teve precisão de comprar um ovo. Ah, titica de galinha deixa fedor. Deixa fedor, mas fortalece uma couve, uma alface. Até para isso a gente tem proveito, serventia. A minha dona, tadinha, não quis matar nenhuma criação. Precisava ver a tristeza. Com os olhos mareados, me enfiou em uma sacola e me deixou nos limites da cidade. Quis até amarrar um saquinho com milho no meu pescoço, para eu ir bicando no caminho. Mas matutou de outro jeito. Aquilo ia virar peso. E podia atiçar outros animais caminho afora. Ela disse: ‘Vai com Deus, minha amiga!’. E aqui estou, com a proteção de São Francisco de Assis. Como foi a viagem? Ah, moço, penei. Sem trocadilhos. Penei!

Primeiro, tinha que tomar um rumo. Aprumar o bico para um lado ou para outro. Mas, qual? Virei para a esquerda e tomei pé. Primeiro, de galope. A necessidade era ficar longe de Muzambinho o mais ligeiro que pudesse. Depois, desarmei o passo. O Sol assando meu pescoço pelado. Ficou todo empolado. Mas isso não foi o pior. E a secura? Ruim de achar um riacho para um gole d’água para molhar o bico. Caminhei por fora das cidades. Besta não sou. Corri de cachorro raivoso, até de lobo-guará e de jaguatirica. Medo mesmo foi de um andarilho, na beira de uma estrada. O homem sujo e barbado me viu e ficou chamando ‘vem cá, cocó, vem cá’. Vem cá nada. Vi a fogueira acesa. Nem…! Peguei trote, de novo.

Fome? A secura não secou tudo de vez. Dali, dacolá, uma plantação, uma fruta caída. E onde dava, ciscava e cavacava o chão atrás de minhoca. Vê, não estou magra como poderiam pensar depois de uma jornada como esta. Estou aqui, na redondeza dessa cidade, da capital. Sempre perto de uma árvore. É para buscar poleiro, fugir de cachorro. O que preciso agora é de um lar. De alguém para alisar minhas tristes penas. Ah, vão dizer, na cidade grande não há quintal, terreiro. E daí? Posso ser uma pet, criada dentro de casa, com conforto e comida. Está na moda. Galinha pet? Por que não? Não tem quem cria porco, jiboia, até jacaré, na sala, no quarto, na cozinha? E cada cachorro grandão, gato gordo… E olhe, que chique, uma pet que dê um ovo todos os dias para o café da manhã.

Se estou com raiva do prefeito e da vereança de Muzambinho? Bestagem pura! Estou não. Acho que nem tenho essa capacidade, de ficar enfezada. Bem, vou ficando por aqui, pelo menos por enquanto. Se souber de alguém interessado em companhia, fale comigo. Estou só e sem lugar. Meu nome? Pode me chamar de Esperança. Bom nome para estes tempos de incerteza, não?”

A bronca do Samuel - Plínio Barreto

Estado de Minas: 25/10/2014



Foi numa clara e quente manhã daquele verão carioca que eu finalmente cheguei à conclusão de que minha vida profissional teria que andar juntinho com a vida pessoal. A distância estava pesando, a saudade da convivência diária com a família se tornando insuportável, as férias- prêmio chegando ao fim, e nada de concreto em relação à transferência do emprego público, que me possibilitaria levá-los para viver na capital federal.

Absorto na leitura de um dos jornais – eram muitos, nacionais e estrangeiros – que estavam espalhados sobre sua mesa de trabalho, Samuel Wainer não dava por minha presença do lado de fora, embora as paredes fossem de vidro. A sala do “poderoso chefão” parecia um aquário. O jeito foi, com os nós dos dedos, chamar sua atenção.

Olhou-me por sobre os óculos, sorriu, fez sinal para que eu entrasse. Sem se levantar, estendeu a mão para o cumprimento. Felicitou-me pela reportagem inserida com enorme destaque – a cores –, ocupando quase toda a página do jornal daquele dia. A matéria merecera tanta ênfase que na página, além dela, estava apenas a coluna de Nelson Rodrigues – A vida como ela é – e uma pequena notícia sobre o atacante Vinícius, que atuava no Lazio, de Roma, também de minha autoria.

Toda aquela gentileza só fazia por aumentar minha inibição em relatar o motivo da minha presença ali nos domínios do “chefão”. Mas criei coragem e fui falando aos borbotões. Cara a cara informei que já estava com a mala pronta para regressar em definitivo para Belo Horizonte. Reiterei o fim de minhas férias-prêmio e a necessidade de reassumir meu cargo na Imprensa Oficial do Estado.

Samuel Wainer levantou-se, incrédulo. Elevou a voz:

“Tu estás louco! Jogar fora uma carreira promissora como a tua? Estás maluco?”

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Serviço - Eduardo Almeida Reis

Serviço


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 24/10/2014



Depois que bandidos incluíram meu endereço eletrônico numa lista vendida a milhares de chatos, são dezenas os e-mails que recebo todos os dias. Incluí uma porção em “lixo eletrônico”, mas continuam chegando assim mesmo e me obrigam a excluí-los diariamente. Entre os remetentes habituais, todas as lojas conhecidas, Ponto Frio, Bahia, Ricardo etc., que vivem anunciando nas televisões.

Considerando que jornalismo é serviço, tomo a liberdade de repassar ao leitor sério alguns dos e-mails que tenho recebido: Alice Bueno “Estimulante sexual para qualquer ocasião” @tripleonline.com.br; Milena Moreira “Fortifique seu desempenho na cama” @brasilverde.info; Solange “Amor e Sexo: tenha uma vida sexual mais ativa” @painel.levemkt-org.com.br; Salete Machado “Tenha mais segurança na hora do sexo” @brasilverde.info; Pedro Araujo “Acabei com a impotência com essa dica” @top2014.us; Ana Maria “Atraia sexualmente quem você quiser” @painel.semprenamidia-online.com.br; Jociane “O que fazer quando o sexo não flui por disfunção, libido ou fadiga?” @painel.vpsenvio2.com.br.

Jociane terminou seu conselho com um ponto de interrogação, sinal de que não sabe o que deve ser feito quando o sexo não flui por disfunção, libido ou fadiga. Sou forçado a recomendar-lhe que procure Alice Bueno, Milena Moreira, Salete Machado e outras invasoras de endereços eletrônicos. Ou, então, que procure o potente Pedro Araujo e me poupe dos seus e-mails diários.

Cidades
Centralia, nos Estados Unidos, Epecuen, na Argentina, Fordlândia, no Brasil, Humberstone, no Chile, Kayaköy, na Turquia, Kolmanskop, na Namibia, Hashima, no Japão, Ordos, na China, Pripiat, na Ucrânia e Pyramiden, a 1.300 quilômetros do Polo Norte, foram algumas das cidades desabitadas que encontrei pesquisando no Google. Há muitas outras, grandes ou pequenas, espalhadas pelo planeta. Nenhuma, contudo, chegou perto de abrigar 9.500 mil habitantes – nove milhões e quinhentas mil pessoas – como deve ficar grande parte de São Paulo se não chover até março de 2015.

Até lá a Sabesp garante que aquela parte da capital paulista vai ter água. Depois, é claro que vai continuar tendo, porque vai chover, mas a notícia é assustadora. Água consegue ser mais importante que cerveja, vinho e champanha. O homem pode sobreviver sem os três últimos – e tenho sido prova nos últimos dois anos –, mas depois de 48 horas sem água surgem as perturbações hidreletrolíticas e todos passam desta para a pior.

Considerando que as águas dos rios paulistanos são intratáveis, é tempo de o prefeito Haddad, administrador da cidade mais rica do estado mais rico do Brasil, pensar nas soluções possíveis, ainda que muito caras. Sua excelência diz que vai furar poços. Talvez o Aquífero Guarani, com 1.200.000km2 de área, tenha um pedaço embaixo de Sampa. Dessalinizar águas do Atlântico e bombeá-las para São Paulo? Inventar uma transposição ao contrário do São Francisco, trazendo água do Amazonas para o Sudeste? Deve ser a melhor solução, porque pode aproveitar para abastecer com água do Amazonas o Velho Chico, que, por seu turno, será transposto para o Nordeste.

Dos 9.500 mil moradores ameaçados de ficar sem água, uns 2 milhões devem ter vindo lá do Nordeste acostumados com as secas, mas tinham o mandacaru e outras cactáceas, além dos caminhões-pipas e as cisternas da Sudene, que faltam na capital paulista. E só uma coisa é certa: vocês ficam brincando com coisas sérias, mas o quadro é muito grave.

O mundo é uma bola
24 de outubro de 1147: conquista de Lisboa aos mouros. Não fosse ela, todos vocês estariam rezando cinco vezes por dia voltados para Meca. Em 1241, eleição do papa Celestino IV, que morre 17 dias depois. Nascido Gauffredo Castiti Glioni (Pisa (?)-Roma, 1241), Celestino IV era sobrinho do papa Urbano III. Foi monge cisterciense na abadia de Hautecombe, onde escreveu sua famosa História da Escócia. Foi o primeiro papa a ser escolhido numa eleição fechada, por isso chamada conclave, do latim concláve,is 'toda parte de uma casa fechada a chave, quarto, alcova'. Em 1763, um edital manda demolir todas as barracas de madeira e pano montadas em Lisboa depois do terremoto. Em 1848, Manaus é elevada à categoria de cidade. Etimologia: manau(s), nome da nação aruaca da região + sufixo -ara, provavelmente tupi ou nheengatu, com a noção 'ser de, oriundo de' (cf. parauara, paroara, potiguara etc.). Claro que ninguém se interessa pela etimologia de Manaus, mas estou precisando espichar este “O mundo é uma bola”, que os sueltos de hoje ficaram curtinhos. Em 1812, pulei as Guerras Napoleônicas próximas de Moscou. Ando mais preocupado com os jihadistas em França, porque tenho amigos que vivem visitando Paris. Em 1855, foi extinto o concelho de Pinheiro da Bemposta, mas você clica em Pinheiro da Bemposta e descobre que o concelho foi extinto em 2013. Em 1929, “Quinta-feira negra”, início da Grande Depressão. Em 1930, deposição do presidente Washington Luís, ponto culminante da Revolução de 30, que levou Getúlio Vargas ao poder. Em 1933, pedra-fundamental de Goiânia, capital de Goiás, onde pontifica Carlinhos Cachoeira. Em 1945, criação da Organização das Nações Unidas, a ONU, com o Brasil fazendo parte dos primeiros 27 países signatários.

Ruminanças
“Pedimos conselho, mas esperamos aprovação” (Charles Caleb Colton, 1780-1832). 

Eterna Diva - Ailton Magioli

MPB » Eterna diva Caixa com cinco CDs reúne gravações de Maysa Matarazzo no exterior. O repertório reúne clássicos como Ne me quitte pas e o disco feito por ela nos estúdios da Columbia, nos EUA


Ailton Magioli
Estado de Minas: 24/10/2014

Se cantando em português ela já é excelente, imagine em inglês, italiano e espanhol, além, claro, do francês, língua em que se tornou conhecida pela interpretação do clássico Ne me quitte pas, do belga Jacques Brel. Dona de estilo inconfundível, até hoje copiado escancaradamente por candidatas ao posto de diva da fossa, Maysa Matarazzo (1936-1977) tem parte importante de sua carreira fonográfica resgatada com o lançamento da caixa Maysa internacional pelo selo Discobertas, de Marcelo Froes.

O box com cinco CDs reúne preciosidades como Sings songs before dawn (1961), álbum gravado nos estúdios da Columbia Records, em Nova York. Além de standards americanos, há o primeiro registro feito por ela de Ne me quitte pas. “Trata-se do segundo álbum americano de Maysa, que já havia gravado The sound of love em São Paulo. Além da qualidade do repertório e dos arranjos (Jack Pleis), o disco se destaca pela produção e a capa”, afirma o produtor e pesquisador Marcelo Froes. 
O recorte internacional do repertório, explica o produtor, resgata “um dos diversos elos perdidos da carreira de 20 anos da estrela”. Marcelo diz que alguém precisava “costurar” esses elos, pois a trajetória de Maysa se dividiu entre diversas gravadoras. Graças ao apoio de Jayme Monjardim, filho único da cantora, o produtor e pesquisador traz de volta CDs com raridades, muitas delas lançadas em compacto. O tema de abertura da novela Bravo!, da TV Globo, assinado por Maysa e o maestro Julio Medaglia, fez parte de um compacto da Som Livre, de 1975, completamente obscuro. “Foi a última gravação dela em estúdio. Os fãs e as novas gerações precisam conhecê-la”, avalia o pesquisador Tiago Silva Marques, que assina a coprodução da caixa.
Segundo Marques, desde a minissérie Maysa – Quando fala o coração (2009), apresentada em nove capítulos pela TV Globo, não se falava mais na cantora, cuja biografia, Maysa – Só na multidão de amores, foi escrita por Lira Neto. “Ela estava absolutamente esquecida”, lamenta, salientando a importância de os fãs conhecerem a incursão da brasileira no exterior. Além de se aventurar nos EUA, Maysa investiu no mercado latino e gravou em espanhol quando morava na Europa. No anos 1960, dividida entre o Brasil e o exterior, ela enfrentou um período obscuro em sua carreira. 

PÉROLAS Os três CDs da caixa, dedicados a raridades, estão datados. O primeiro, de 1959 a 1966; o segundo, de 1967 a 1969; e o terceiro, de 1969 a 1976. O segundo traz pérolas como Missão (Sergio Ferreira da Cruz) e Em qual estrada (Fred Falcão e Paulinho Tapajós), com as quais a cantora concorreu no 2º Festival Universitário da Guanabara, da TV Tupi, em 1969.
Em 15 anos de Discobertas, Marcelo Froes produziu cerca de 50 lançamentos. Para ele, no entanto, Maysa é diferente. “Totalmente livre, ela fazia o que queria e quando queria. As gravadoras nunca a dominaram”, garante. Entre outras pérolas raras da caixa apontadas por Tiago Silva Marques estão as gravações feitas na França de Chega de saudade (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) e Cent mille chansons (Michel Magne e Eddy Marnay), em 1963. “Para mim, é como se ela se repatriasse”, conclui.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Efeito Arquibaldo II - Eduardo Almeida Reis

Efeito Arquibaldo II


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 23/10/2014




Falávamos na edição de ontem da maluquice que toma conta das arquibancadas onde ficam os arquibaldos nos jogos de futebol, quando começam a gritar e xingar só porque os outros estão xingando. Três semanas depois que uma gaúcha de 23 anos, torcedora do Grêmio, foi identificada e processada por ter chamado de macaco o goleiro Aranha, do Santos, o time paulista voltou a jogar no estádio gremista e o xingatório partiu da esmagadora maioria dos torcedores do Grêmio. Cada vez que o quíper pegava a bola os torcedores apupavam, dessa vez recomendando ao senhor Aranha que assumisse a condição de pederasta passivo, recomendação muito parecida com a das arquibancadas do Maracanã dirigidas a uma senhora feia, incompetente e gorda, que vocês conhecem muito bem. No caso dela, evidentemente, não haveria pederastia, porque aconselhada a interagir com homens.

Nesta nova investida do Efeito Arquibaldo gremista sobre o arqueiro do Santos lembrei-me de que no meu livro O Papagaio Cibernético, publicado na década de 80 quando começou no Brasil a febre informática, um dos personagens, mamífero primata da família Atelidae, o Ateles paniscus, seria politicamente incorreto ou racista, se o livro fosse publicado hoje. Isso porque o Ateles paniscus atende vulgarmente pelos nomes de quatá (coatá) ou macaco-aranha-preto.

Quase desprovido de polegares, é mamífero estimável e se caracteriza pela cauda descomunal, que funciona com a força dos outros membros, bem como pela proteção dos filhotes do bando em situações de perigo, quando as mães coatás não estão por perto. Nessas ocasiões, os filhotes se agarram ao macho mais próximo, que os protege até acabar a situação de risco.

Talvez percebendo a impossibilidade de proibir o Efeito Arquibaldo nos estádios, o futebol brasileiro parece ter descoberto a pólvora: jogos sem assistência. Sempre que as tevês nos mostram os jogos da Série B, de onde saem quatro clubes para disputar a Série A no ano seguinte, o que vemos são partidas de bom ou mau futebol com arquibancadas vazias. Mesmo nos jogos da Série A vemos arquibancadas às moscas. Inexistindo arquibaldos acabam os xingatórios, que ficam restritos aos atletas quando se dirigem aos juízes, agora chamados árbitros, e aos telespectadores para dizer que a CBF é uma vergonha, no que têm carradas de razão.

Vintaneiro
As jornalistas Florença Mazza, Anna Luiza Santiago, Clara Passi e Rafaela Santos ajudam Patrícia Kogut a fazer a coluna de crítica televisiva no Globo, função complicada considerando que Patrícia é casada com Ali Kamel, diretor geral de jornalismo e esportes da Rede Globo. Se Patrícia e suas colegas criticam o muito que há para criticar nas outras redes, pode parecer implicância de profissionais ligadas à Globo.

Criticando a rede pertencente ao grupo controlador do jornal devem provocar arestas empresariais e familiares. Dia desses, deram Nota 0 para a frase do Faustão no Domingão de 21 de setembro: “Vocês nasceram com o funk dentro de vocês, como se fosse o funk um supositório. Vocês dançam com o útero, bicho”. E concluíram com a seguinte observação: “Melhor seria ele evitar a poesia”.

Philosophemos. O senhor Fausto Silva tem para a televisão brasileira a importância de um Maomé para os muçulmanos e de um Osman I para o Império Otomano, além do salário mensal de R$ 5 milhões: sua poesia sobre o supositório do funk ligado ao útero deve estar num plano superior à melhor poesia feita no Brasil, daí o fato de não ter sido entendida pelas jovens jornalistas.

O fazer poético de alto nível dispensa pormenores anatômicos e faz que o supositório funk, transposto o trecho hemorroidário, alcance ao útero. Portanto, não é passível de crítica jornalística, sobrepaira o entendimento das pessoas normais e serve para explicar o sucesso vintaneiro do senhor Fausto Silva. É isso aí: vintaneiro, “que ou aquele que tem 20 anos”.

O mundo é uma bola
23 de outubro de 4004 a.C., dia em que a Terra começou a ser criada segundo o irlandês James Ussher. Nascido em Dublin no dia 4 de janeiro de 1581, Ussher, arcebispo de Armagh, foi a óbito no dia 21 de março de 1656. Teve, portanto, 75 anos para dizer besteiras amplamente aceitas naquele tempo e ainda hoje. Baseado na Bíblia e noutras fontes, concluiu que o mundo foi criado 4004 anos antes de Cristo. E continuou solto, como sói (verbo soer) acontecer até hoje com um monte de imbecis. Em 425, Valentiniano III ascende ao trono romano do Ocidente. Até aí, tudo bem. Acontece que Flavius Placidus Valentinianus nasceu em Ravena, perto de Roma, em 419. Tinha, portanto, seis anos de idade. Reinou de 425 a 455. Permaneceu na dependência de Teodósio II, imperador do Oriente. Em seu reinado perdeu a Bretanha. Foi assassinado aos 36 anos por dois soldados da sua Guarda Pretoriana.Em 1943 foi publicado pela primeira vez, na revista O Cruzeiro, o quadrinho O Amigo da Onça. Em 1940 nasceu Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. Hoje é o Dia da Aviação e do Aviador.

Ruminanças – “Os homens se dividem em duas espécies: os que têm medo de avião e os que fingem que não têm” (Fernando Sabino, 1925-2004).

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

MARTHA MEDEIROS - Sem arrego

Zero Hora 22/10/2014

“Resmungos e ranger de dentes não vão ajudar, as coisas mudaram e precisam ser assimiladas o quanto antes, porque vieram para ficar. Resistir ao que de todo modo vai acontecer seria falta de sabedoria e perda de tempo.”

Me senti uma garotinha de cinco anos ao ler esse puxão de orelhas que havia sido direcionado a mim. Em três linhas eu havia sido chamada de birrenta e burra. Tranquei o choro.
Mas logo me dei conta de que eu não tinha mais cinco anos e que não deveria levar a reprimenda tão a sério, afinal, foi direcionada a mim, mas também a outros tantos, e por alguém que nem me conhece direito. Resolvi achar graça e tocar minha vida sem me perturbar com questões menores.
Mas ele não se abalou com meu pouco-caso e seguiu com a artilharia pesada.

“Tenha cuidado com esse cansaço que pesa sobre a alma, pois é ele que induz a acreditar na ilusão de que os problemas poderiam ser resolvidos de uma tacada só, com fórmulas mágicas. Isso não acontecerá de jeito nenhum.”

Rogando praga. Insolente. Quem disse que estou com cansaço na alma, quem?
Resolvi ler o que ele dizia sobre os outros signos. Realmente, ele não era um representante da geração paz & amor, mas pegava mais leve com Áries, Gêmeos, Libra. Comigo é que a rudeza imperava. Perseguição nítida.

A solução era simples: deixar de dar ibope para as suas ralhações astrológicas. Ignorar. Estava decidida a fazer isso a partir do dia seguinte. Porém, o novo dia amanheceu, como sempre amanhece, e eu me vi espichando o olho para aquele quadradinho minúsculo com três pequenas linhas onde cabia toda a ira do universo contra mim. Foi então que compreendi como funciona a cabeça dos leitores que odeiam certos colunistas do fundo do coração. Xingam, rosnam, ofendem, mas não os abandonam nem sob decreto.
“Nada que for feito intempestivamente ajudará a resolver coisa alguma. Certamente, não será fácil conter os impulsos, mas, se você não se empenhar nesse sentido, sua alma não merecerá ser chamada de humana. Contenha-se!”

Nunca homem algum ousou mandar eu me conter, o abusado foi o primeiro – e ainda usou ponto de exclamação!
Mas se há algo que sobra em mim é resiliência. Se ele acha que vou bater em retirada, engana-se. Vou continuar aqui, pode continuar me atacando, eu aguento.

“Os temores arraigados em sua alma (lá vem ele com essa história de alma outra vez) têm sobre você o poder que você lhes outorgar, nem um pouco a mais do que isso. Esses temores são fantasmas que assombram a perspectiva de progresso que se encontra disponível”.
Entendi. É tudo coisa da minha cabeça. Sou responsável pelas minhocas que coloco na cabeça, e você é apenas um filósofo a serviço dessa reles criatura que teima em não evoluir.


Não me faltava mais nada. Humilhada pelo meu próprio horóscopo.