terça-feira, 14 de outubro de 2014

O estilo, as ideias, as decisões e a ambígua relação de Dilma com Lula

A afilhada rebelde

O estilo, as ideias, as decisões e a ambígua relação de Dilma com Lula
Daniela Pinheiro
Era o final de uma manhã de brisa fria e sol quente, no início de setembro, quando o presidente do sindicato dos taxistas de São Paulo, Natalício Bezerra da Silva, tomou o microfone e se dirigiu à restrita plateia: “Vamos respeitar, hein? Nada de gracinhas. Não se convida uma pessoa para vir na casa da gente e a gente hostiliza.” O grupo aguardava a chegada da presidente da República e candidata à reeleição, Dilma Vana Rousseff, do Partido dos Trabalhadores, que naquele momento tinha 36% das intenções de votos – o que a colocava em empate técnico, no primeiro e segundo turnos, com Marina Silva, do Partido Socialista Brasileiro, catapultada às alturas nas pesquisas depois da morte do cabeça da chapa, o ex-governador Eduardo Campos, em agosto.
“Eu não estou preocupado com vocês, não. Nossa categoria é respeitosa, mas pode aparecer alguém de fora, querer aprontar, tumultuar, aí vai ter”, continuou o sindicalista, ainda que sua preocupação fosse infundada, já que o ambiente estava cirurgicamente controlado. A imprensa foi espremida num pequeno palanque. Apenas dirigentes sindicais identificados – a maioria trazendo estampados no peito adesivos com a cara da candidata – tinham acesso à área diante do palco. Populares eram vetados. Uma mulher, moradora de um prédio vizinho, foi orientada por um segurança a dar a volta no quarteirão para entrar em casa. Meia hora depois, Dilma Rousseff foi recebida por uma audiência calorosa. A equipe da candidata filmava tudo.
A menos de um mês das eleições, a campanha da presidente precisava se blindar de vaias, perguntas incômodas, manifestações populares fora do script. E pior: tinha que lidar com uma inédita e sombria perspectiva nas urnas. Dentre os eleitores, apenas 38% achavam sua gestão “boa ou ótima”. Ainda segundo o Datafolha, mais da metade da população a considerava entre regular e péssima. Sua rejeição em São Paulo – maior colégio eleitoral do país – alcançava 47%. Em âmbito nacional, 34% do eleitorado afirmavam não votar nela “de jeito nenhum”. Era o maior percentual negativo entre os presidenciáveis. Desde o início da corrida eleitoral, pela primeira vez parecia concreto o risco de o PT deixar o poder depois de doze anos no comando do país.
A popularidade de Dilma Rousseff, ao chegar ao governo, ultrapassava os 70% de aprovação. O caminho entre o pedestal e a corda bamba foi curto e difuso. É difícil determinar a pedra que pavimentou a rota do declínio: se as decisões econômicas ou a inexperiência política da governante; se a onda de mudança que veio à tona nas manifestações de junho ou o temperamento insular da mandatária; se a ojeriza aos rituais da política ou a tentativa de imprimir a própria marca ao governo; se a persistência da crise internacional ou o espectro de seu padrinho político, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lhe fez sombra durante todo o processo. Uma relação peculiar que – como disse certa vez o ministro Gilberto Carvalho – ainda vai merecer estudos acadêmicos.
Para esta reportagem, foram ouvidas 26 pessoas ligadas à presidente ou ao Partido dos Trabalhadores. A maioria pediu anonimato. Dentre os procurados, apenas Dilma Rousseff e o ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante, se negaram a falar com piauí.

Ao assumir o mandato, Dilma Rousseff – a gerentona, a mãe do Programa de Aceleração do Crescimento – tinha em mente o que queria fazer: dar continuidade às políticas de inclusão social do governo Lula e implementar uma agenda desenvolvimentista, das grandes obras de infraestrutura, assunto que sempre lhe foi caro, para mover a economia. O país tinha crescido em ritmo chinês e parecia recuperado do impacto da crise global de 2008. Além disso, havia a perspectiva dos ganhos do pré-sal e da vitrine da Copa do Mundo.
A primeira equipe ministerial tinha a cara da dupla. Dos 37 ministros, quinze haviam sido indicados por Lula. Entre eles, Guido Mantega, mantido na Fazenda, e Fernando Haddad, na Educação, com vistas à sua campanha eleitoral para a Prefeitura de São Paulo. O ex-presidente também pediu para segurar José Sérgio Gabrielli no comando da Petrobras. Dilma ainda herdou boa parte dos dirigentes de estatais e autarquias, e até a chefe do escritório da Presidência em São Paulo, a então desconhecida Rosemary Noronha. E acomodou as nomeações de ocasião feitas pelos partidos da coligação. De sua lavra, emplacou as ministras mulheres e o ex-prefeito de Belo Horizonte, o amigo Fernando Pimentel, no Desenvolvimento.
Desde que Lula inventou a candidatura de sua ex-ministra das Minas e Energia e da Casa Civil, o que ele via como qualidade em Dilma, uma fatia do petismo e dos partidos aliados enxergava como defeito intransponível: o voluntarismo, as opiniões fortes, o temperamento irascível, a inexperiência política e até o vocabulário prolixo, de falas longas e enfadonhas, permeadas de termos técnicos. Um dos mais próximos interlocutores de Lula disse ter sempre defendido que ela precisava de “assessoria emocional” para ser presidente.
Lula parecia calcular que sua presença ao alcance em caso de emergência, a competência gerencial da sucessora, a boa onda na economia e a força do apoio de dezessete partidos e de mais de 80% do Congresso Nacional garantiriam um governo de sucesso. O resto era contornável. No mais, ele era o grande vencedor da eleição. Seu poste havia chegado lá.

Os primeiros meses de governo foram redentores. Em poucas semanas, Dilma já mostrava a que viera: vetou a distribuição de cargos federais para parlamentares da base governista e anunciou um corte de 50 bilhões de reais no Orçamento. Foi à China, visitou vizinhos latino-americanos, recebeu no Planalto o presidente americano Barack Obama. Jactava-se de ser a primeira mulher a discursar na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas. Era uma estadista.
A classe média e a elite enfim reconheciam um rosto familiar: Dilma era discreta, tinha compostura, falava português sem erros de concordância, fazia o estilo durona e parecia intransigente diante de evidências de corrupção. Distanciava-se do jeito Lula de ser. Rapidamente, a impressão foi captada pelas pesquisas de opinião. Em maio de 2011, o Ibope registrava que ela tinha 73% de aprovação popular.
Ainda na primeira quadra do ano, Dilma teve uma pneumonia e precisou se afastar. A bancada do PMDB aproveitou para fazer o que melhor sabe: escambo político. Na votação do Código Florestal, ameaçou ir contra o governo caso não fossem atendidos os pedidos de emendas e cargos. Em seu primeiro choque de realidade, a presidente também respondeu com as armas que melhor maneja: ameaçou demitir os ministros do partido. Instalou-se a primeira das muitas crises com a base aliada. Sem avisar Dilma, Lula desembarcou em Brasília para acalmar os ânimos dos correligionários. Reuniu-se com o vice-presidente, Michel Temer, foi fotografado ao lado de José Sarney e Renan Calheiros, dourou a pílula e, para alguns, atribuiu à inexperiência da sucessora a confusão, afinal contornada.
A mensagem ficou clara: a luz do poste era ele. Dilma, é lógico, não gostou. Sentiu-se atropelada por Lula, enquanto ele acreditava estar apenas acomodando a situação. O PMDB acabou votando em peso a favor da emenda que anistiava os desmatadores, derrotando o governo. E ninguém foi demitido. Recentemente, um petista paulista resumiu o caso: “Essa inabilidade política, misturada com arrogância, marcou as ações dela. Como pôde achar que era ligar, ameaçar o vice e ele ia pedir desculpas?” Mas Dilma saiu maior do episódio: era ela brigando quixotescamente contra os venais da política.
Em maio, o país tomou conhecimento do portentoso aumento de patrimônio do ministro Antonio Palocci. Em apenas um ano, sua empresa de consultoria havia faturado 20 milhões de reais. Na época, uma ministra disse ter ouvido da presidente: “Eu achei que fossem 3 ou 4, mas 20 é foda.”
A saída de Palocci da Casa Civil foi um divisor de águas. Além de ter a confiança do empresariado mais graúdo, era ele quem negociava a votação de projetos e o preenchimento de cargos no governo. No Planalto, também acalmava o ambiente. Com ele, Dilma não precisava se expor às querelas brasilienses, à romaria dos parlamentares atrás de verbas, às visitas de ocasião dos representantes do PIB. Palocci fazia bem o serviço.
No lugar dele, assumiu a senadora petista Gleisi Hoffmann. Ao lado da também petista Ideli Salvatti, na articulação política, elas formavam, com Dilma, a trinca que passou a dar o tom das negociações do governo com seus aliados. A nomeação repercutiu mal no entorno, que ficou com a impressão de que as duas eram “café com leite”: não tinham pulso firme ou estofo político. Como verbalizou o então ministro da Defesa, Nelson Jobim, a piauí, em agosto de 2011: “Ideli é muito fraquinha e Gleisi nem sequer conhece Brasília.”
A presidente tinha suas razões. Primeiro, não queria outro “superministro” para lhe fazer frente – Palocci era uma exceção. Até o último minuto, Lula garantiu ao titular da Casa Civil que ele ficaria no cargo, mas Dilma sepultou a hipótese. Em público, ele pediu demissão, aceita por ela depois de vinte dias de crise. Quis para o lugar alguém em que pudesse confiar, mas, sobretudo, mandar. Agradava-lhe ainda a ideia de valorizar duas mulheres naqueles cargos, antes só ocupados por homens.
Nesse momento, para vencer a tentação de dar palpites – como ele mesmo declarou –, Lula se embrenhou numa maratona de viagens internacionais que lhe tomaram quase todo o ano de 2011. Coincidiu com a época em que o governo Dilma começou a ter uma feição própria. As demissões em série deram ao marqueteiro João Santana uma senha para colar na presidente: Dilma era a faxineira da corrupção.
Em seis meses, sete ministros foram demitidos – seis envolvidos em denúncias de irregularidades no cargo. Se a faxina encantou parte da opinião pública, internamente acendeu um sinal de alerta. Entre os aliados, o crachá de faxineira pressupunha a corrupção incrustada na máquina do Estado, expondo-lhe as tripas. Quatro dos seis ministros vinham do governo Lula. No PT, comentava-se a facilidade com que Dilma rifava companheiros. “Demissões por malfeito são ossos do ofício”, disse ela à época.

Sem Lula e sem Palocci, Dilma ia ficando mais Dilma. Em meados de 2011, por ocasião do aniversário de 80 anos de Fernando Henrique Cardoso, ela enviou um cartão de felicitações cheio de elogios ao ex-presidente tucano. O petismo estremeceu. Não bastasse, ela tomava providências em áreas das quais seus antecessores mal haviam tido coragem de se aproximar: instalou a Comissão da Verdade para esclarecer crimes da ditadura militar, assunto que Lula procrastinava, e aprovou a Lei de Acesso à Informação, acabando com o sigilo eterno de documentos públicos.
O empresariado estava encantado. Como havia assumido o governo com o dólar depreciado, o que prejudicava a indústria, Dilma Rousseff procurou beneficiar o setor controlando o câmbio, por exemplo. Preparava o maior pacote de concessões da história, que daria à iniciativa privada um bom pedaço das estradas, aeroportos e ferrovias do país. Com a imprensa, o clima era de início de namoro.
O governo seguia em velocidade de cruzeiro quando, no final de outubro, veio o baque: Lula foi diagnosticado com um câncer na laringe. Ela, que havia tratado a mesma doença havia pouco mais de dois anos, ficou devastada com a notícia. Sem o padrinho por perto, o poder dos lulistas no Planalto foi se esvaziando. A começar pelo do secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, e de Marco Aurélio Garcia, assessor especial para Assuntos Internacionais, sobre os quais ela costuma dizer que “falam coisas que não são do nosso governo”. No Planalto, ela já era chamada de “a tia”, apodo cunhado pela velha guarda lulista. Até hoje, não raro um estranho pode escutar durante uma visita que “a tia está procurando” por alguém.
No fim de 2011, Dilma atingiu o maior índice de aprovação de um presidente: 59% dos brasileiros consideravam sua gestão ótima ou boa. Foi o maior percentual já alcançado desde a volta das eleições diretas no país. A economia cresceu menos que no ano anterior, mas o Brasil havia criado 2 milhões de empregos e superado a Inglaterra, tornando-se a sexta economia do mundo. O poste começava a brilhar sozinho.
Por essa época, num encontro no Planalto, ela confidenciou a um ex-ministro do governo Lula, com quem ambos mantêm boas relações: “Se o Lula quiser, a próxima é dele. É só ele me falar”, disse, referindo-se às eleições de 2014.

O segundo ano de governo começou tépido e inodoro como uma fala de Michel Temer. Com a perspectiva das eleições municipais em outubro, Dilma diminuiu a agenda de viagens e se trancou no Planalto para traçar os termos do bilionário pacote de concessões em infraestrutura. Estava em seu ambiente: imersa em números, cláusulas, índices, percentagens, muito PowerPoint.
A performance da presidente já era conhecida desde os tempos das Minas e Energia: ela abria o computador, vertia uma miríade de estatísticas, elencava planilhas, “espancava o projeto” – como gosta de dizer – até não sobrar de pé nenhuma brecha ou dúvida. Comandava reuniões infindáveis, em que se debatia por horas um mero ponto e vírgula. Nas negociações do pacote dos aeroportos, um ministro disse terem passado oito meses falando sobre a TIR – a taxa de retorno dos investidores. O detalhismo emperrava o processo, decisões se arrastavam e o projeto demorava a sair do papel.
A essa altura, já estava evidente sua ojeriza pelos rituais da vida brasiliense: reuniões com ministros, encontros com deputados, recepções no Itamaraty, fuxicos com a base aliada. Receber entidades de classe era um parto. Movimentos sociais, muito de vez em quando. Empresários tentavam, em vão, marcar audiências na agenda sempre lotada – pelo menos para eles. Nos encontros com parlamentares, chamava atenção a falta de autonomia de Ideli Salvatti. Ou ela respondia às demandas dizendo que “ia ver com a presidente”, ou chegava chutando a canela dos interlocutores, como um ventríloquo da chefe.
Dilma não falava nem com a bancada do PT. “Para ela, a política era o mal em si. Empresário era abutre, e político era picareta. É assim que ela pensa”, disse um importante dirigente do Partido dos Trabalhadores, durante um café da manhã, no Rio. Dilma não liberava dinheiro, dificultava a distribuição de cargos, não recebia os políticos, não respondia aos empresários. Um assessor da Presidência resumiu as razões do comportamento: “Ela achava que já sabia o que eles iam pedir ou reclamar. Então, na cabeça dela, não tinha que gastar tempo com isso.”
Os caprichos desnorteavam o cerimonial do Palácio do Planalto. Uma vez, na Espanha, ela quis fazer compras no El Corte Inglés, mas vetou a companhia de seguranças. O grupo precisou se esconder atrás das araras da loja de departamentos. Em Londres, quis andar de metrô, causando rebuliço entre os seguranças da Scotland Yard, que iam abrindo passagem para a comitiva brasileira. Em Washington, deixou em apuros o embaixador Mauro Vieira porque se recusava a se sentar, durante o encontro com Barack Obama, no salão de entrevistas da Casa Branca. Depois de muita argumentação, ela concordou. Um ex-integrante do cerimonial disse que era para evitar ser fotografada sentada – ela usava saia.
Aos poucos, as reuniões ministeriais também foram minguando. Desde a posse, todos os ministros haviam sido proibidos de falar com a imprensa. Qualquer declaração oficial, só por meio do porta-voz ou da própria presidente.
Em seu governo, Lula usava os vazamentos de informação para testar várias ideias. Deixava deputados fomentarem boatos de maneira a ter um termômetro do que pensava em fazer – ou não fazer. Também aproveitava os discursos paramandar recados, responder a ataques, fazer a defesa do governo, dar a tônica da disputa política. Conseguia traduzir questões complexas nos termos das massas.
Com Dilma, nada disso acontecia. Para ela, vazamento era apenas insubordinação, traição. Quem o fazia era posto na geladeira. O senador Vital do Rêgo, do PMDB da Paraíba, perdeu um ministério porque a hipótese de sua nomeação vazou. Testar uma ideia, só nas pesquisas qualitativas encomendadas pelo marqueteiro João Santana, partilhadas com um ou dois interlocutores. Logo se evidenciou que a comunicação era um empecilho incontornável no caso de Dilma: ela se expressava numa sequência de elipses de árdua compreensão; suas frases eram desconexas, longas, truncadas. A imprensa registrou: nascia o dilmês.
“Temos um sistema hidrológico muito sensível à água”; “Sempre que você olha uma criança, há sempre uma figura oculta, que é um cachorro atrás, o que é algo muito importante”; “Precisamos cada vez mais cooptar e captar novas fronteiras tanto na Ásia quanto no Oriente Médio”; “Todos nós aqui sabemos que cada um de nós escolhe – a vida faz a gente escolher – alguma das datas em que a gente nunca vai esquecer dessa data.” Assessores afirmam que, quando escreve, ela é clara, objetiva e focada.

Acumulam-se ao redor de Dilma histórias de gritos, esculachos e rompantes. Mais de uma pessoa me contou ter visto a filha Paula repreender em público as grosserias da mãe, extensivas a ministros, secretárias, funcionários do palácio. Um ex-ministro do governo Lula, com quem Dilma trabalhou diretamente na Casa Civil, presenciou cenas de descontrole. “O que é perverso é que os esporros dela são sempre para quem está embaixo. Ela sabe com quem pode gritar. É que nem lobisomem, sabe para quem pode aparecer”, disse, irônico.
Quatro entrevistados se valeram de conceitos do livro O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, para definir a maneira de Dilma lidar com o poder. Se Fernando Henrique queria ser admirado e Lula queria ser amado, Dilma quer ser temida. Certa brutalidade seria uma maneira de se fazer respeitar, um sintoma de insegurança. “Sou uma mulher dura cercada de homens meigos”, Dilma aprendeu a repetir desde a campanha de 2010, sempre que seu temperamento era questionado. Acertos da equipe nunca são comemorados, não passam de obrigação; desculpas, sinal de fraqueza; dúvidas, prova de desconhecimento.
Ela costuma formar sua opinião ouvindo pequenos grupos distintos – sem que eles tenham conhecimento dessa comunicação estereofônica. Insiste em saber tudo o que pode dar errado, e só então se interessa pelo que pode dar certo. Bombardeia de perguntas o mensageiro de um projeto ou uma ideia. Faz isso uma oitava acima, com expressão similar à exibida quando entregou a taça de campeões do mundo para os jogadores alemães. Os mais vulneráveis tremem. Nas discussões com a equipe, muitas vezes ela externa de cara sua opinião sobre o assunto a ser tratado – o que intimida boa parte dos presentes, que se cala, ainda mais se tiver ponto de vista contrário. O resultado é que metade da equipe não gosta dela e a outra metade tem medo.
 “Esse método prejudicou muito porque ninguém tinha coragem, ânimo ou saco de se contrapor a ela. A ausência do contraditório fez com que ela embarcasse em muitas canoas furadas”, comentou um ex-integrante da equipe econômica do governo, em meados de setembro, durante um almoço, no Rio. “Na econômica, por exemplo”, disse.

Em uma manhã de setembro, o elétrico Roberto Kalil Filho, diretor do Hospital Sírio-Libanês, médico de Dilma e Lula, estava de mau humor. “Hoje é bandeira vermelha”, disse uma de suas assistentes, num código que indica o espírito do chefe. Amigo e responsável pela saúde de autoridades, empresários e famosos, Kalil também é a ponte de vários políticos e jornalistas com a cúpula do PT. Fala frequentemente com a presidente ao telefone. Dão-se muito bem porque, ele disse, são parecidos. As conversas costumam começar com: “Oi, como estamos de humor hoje?”
Sentado em frente ao computador, ele falava sobre a paciente e amiga. Para provar o que dizia, chamou uma secretária. “Vem aqui, quem é mais cão? Eu ou a Dilma?” A moça perguntou se podia falar a verdade. “É o doutor Kalil, ele é o professor dela.” Segundo o cardiologista, avaliações sobre o temperamento da presidente são a maior injustiça contra seu governo. “Você acha que alguém chega num cargo desses sendo boazinha, pedindo por favor?”, perguntou. “Ela é incrível, maravilhosa, mas não está aqui para ficar de nhe-nhe-nhém. É igual a mim aqui no Sírio: o povo fala mal porque a gente cobra.”
Kalil também dirige o Instituto do Coração. Quando se está no comando, disse, “se a gente não mantém o tônus de doido, as coisas não andam”. “Ela é igualzinha. A gente leva no chicote porque senão não sai nada”, comentou enquanto mastigava um sanduíche de queijo. “Claro que toda pessoa como eu e ela às vezes erra na maneira de se expressar, acontece.” Mas desculpas, acrescentou, ele não costuma pedir: “Até porque estou certo.”
Quando a conversa derivou para as decisões políticas e econômicas da presidente, ele saiu pela tangente. “Palpitei no Mais Médicos. E só. Disse para ela que foi uma coisa enfiada goela abaixo, mas hoje conheço melhor o programa e acho muito bom”, afirmou. Para Kalil, se as pessoas soubessem do outro lado de Dilma, entenderiam melhor sua gestão. “Poucas vezes vi alguém tão comprometido em mudar a vida dos pobres. Mas a Dilma é fechada. Por tudo que ela passou na vida, ela é isolada, é o perfil dela.” Segundo ele, a “verdadeira Dilma” é a mulher que sai de madrugada, driblando a segurança, para andar de moto por Brasília – como havia revelado meses antes uma reportagem da Folha de S.Paulo. “Olha que ser pitoresco! Ninguém a conhece de verdade.”
A maioria dos entrevistados confirmou a impressão. Ao conversar sobre assuntos variados, fora da Presidência, Dilma relaxa, conta casos engraçados, deixa brotar o lado leve, tem o humor afiado. Vaidosa, fica lisonjeada quando seu conhecimento sobre artes, música ou literatura é reconhecido. “Ela também tem uma certa coquetterie”, disse-me um ex-ministro. “Mas, em geral, é muito defensiva”, acrescentou.
Nas ocasiões em que se permitiu baixar as armas – foram dez –, Dilma chorou em público. “Ela sempre tratou o governo como uma grande família. E sempre no papel da mãe durona, repressora, que coloca de castigo o ministro que desobedece”, comentou um ex-integrante do Ministério da Fazenda. A exigência se estende a ela própria. “Não posso errar, não posso errar” é uma frase recorrente da presidente ouvida nos corredores do Planalto.
Perguntei a Kalil se Dilma contaria com seu voto. “Claro que não! Sou malufista! O pastor Everaldo é meu candidato”, respondeu, num tom em que a troça soou ambígua. E o que seu paciente mais famoso pensava disso? “A gente não fala do assunto. O Lula diz que eu ainda sou do tempo dos macacos e que no dia que eu evoluir para humano a gente pode conversar sobre política”, respondeu.

A equipe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência era obrigada a preparar relatórios periódicos só para Dilma e Gleisi Hoffman, listando as besteiras cometidas pelos ministros. Detalhe: só as besteiras. Dilma não confia, não delega, não divide informação sobre o governo com o próprio time. Nas reuniões, avisava aos presentes: “Nem todo mundo vai saber de tudo. A informação aqui será compartimentada. Quem tem que saber de tudo sou eu, não vocês.”
Se um ministro demitia alguém sem consultá-la, corria o risco de se ver desmoralizado, como ocorreu com Fernando Pimentel, que exonerou o secretário executivo Alessandro Teixeira. Quando soube, Dilma repreendeu o ministro e chamou o demitido para trabalhar no Planalto. Da agenda dos ministros nos fins de semana – eles eram proibidos de deixar Brasília sem avisá-la – a conversas de pé de ouvido entre auxiliares, ela quer saber de tudo. Não raro, toma satisfações com os envolvidos.
Há quem veja nesse comportamento um eco do próprio passado. Dilma foi torturada pela ditadura e ficou presa durante três anos. “A cabeça dela é a cabeça de célula, de aparelho, como se ainda estivéssemos na luta armada, com gente do nosso lado podendo nos trair ou gente atrás de nós querendo nos pegar”, disse um ministro que passou pelos governos tucano e petista. Segundo ele, tudo faz sentido: a preferência pelo isolamento, a autossuficiência, a desconfiança, o controle da informação, o hábito de guardar grandes somas de dinheiro em casa “para qualquer emergência” ou, ainda, a mania de dormir de sapatos, “caso precisasse sair às pressas”, que a acompanhou por anos. “Ela ainda é a menina dos anos 60”, disse.

Embora o modo de governar e o estilo pessoal prenunciassem ruídos, Dilma estava nas alturas quando começou o segundo ano do seu governo. Elogiada pela imprensa, respeitada pelos empresários, aprovada pelo eleitorado, temida pelos seus – chegara a hora de dar seu primeiro grito de independência. O poste queria luz própria. Em vez de recuar nas medidas de incentivo ao consumo e ao investimento que haviam sido tomadas para contornar a crise global de 2008, ela decidiu pôr o pé no acelerador.
A seu lado, Guido Mantega funcionava como um “aperfeiçoador das ideias”. Na concepção econômica da presidente, valia tudo para promover o crescimento, proteger a indústria e o emprego, bombar o consumo e manter a balança comercial positiva. Um pouquinho de inflação não fazia mal a ninguém, essa era a ideia. Dilma passou a ser acusada de abandonar o tripé econômico – meta de inflação, superávit fiscal e câmbio flutuante – sobre o qual se sustentara a estabilidade da economia nos últimos doze anos.
Críticos alertavam para o risco de promover uma expansão econômica baseada no endividamento. “Ela não ligava para críticas. Nunca ligou. Tinha na cabeça uma ideia de país clara. De fato, ela sabe mais de economia do que as pessoas pensam, e sabe menos do que ela pensa que sabe”, afirmou um ex-integrante dos governos Dilma e Lula.
 Na concepção da presidente, a interferência do Estado na economia é crucial. Há em suas decisões um viés ideológico, de esquerda, muito mais arraigado do que no governo Lula. A má vontade em relação à independência do Banco Central é um exemplo. Dilma costuma dizer que, no dia em que se colocar um banco privado para financiar obras de infraestrutura e programas sociais – como o Minha Casa Minha Vida, cujos recursos são 95% do governo –, o país não vai ter mais nenhuma moradia subsidiada para os pobres.
Guiada por suas convicções, ela baixou as taxas de juros dos bancos estatais para fomentar o crédito e obrigar as instituições privadas a fazer o mesmo. No primeiro pacote de concessão das rodovias, limitou a lucratividade das empresas. “Ela acha que é preciso controlar tudo. Caso contrário, o empresário ia oferecer o pior serviço pelo maior preço, o que podia ser verdade. Mas você pode controlar isso aumentando a concorrência, por exemplo”, observou o ex-integrante da equipe econômica.
 Na Petrobras, fez o mesmo para controlar a inflação: represou os preços dos combustíveis, ainda que a medida representasse um baque para o caixa da estatal. A fim de forçar a queda do preço da eletricidade, antecipou a renovação das concessões das geradoras e distribuidoras de energia, impedindo-as de continuar a cobrar do consumidor a reposição do que haviam investido. As ações das empresas elétricas despencaram.
Em paralelo, Dilma lançava mão do que a imprensa batizou de “contabilidade criativa”: inflou as “receitas” do governo e mascarou as “despesas” de modo a aumentar artificialmente o superávit primário – dinheiro reservado para o pagamento dos juros da dívida pública e que sinaliza ao mercado que as contas internas vão bem.
 Em uma tarde na sede do Partido dos Trabalhadores, o presidente da legenda, Rui Falcão, falava sobre as críticas à gestão econômica. “Por má vontade ou desinformação, ela é acusada de ser intervencionista, mas, na verdade, ela tomou decisões que beneficiaram a população, não acionistas ou empresários”, comentou. “Por que a grita? Porque muita gente rica, pela primeira vez, perdeu dinheiro.”
À medida que Dilma ia imprimindo sua marca, parte do petismo castiço perdia terreno, como ocorreu nos fundos de pensão e nos bancos estatais. Em abril de 2012, ela deu o passo mais ousado. Mandou a nova presidente da Petrobras, Maria das Graças Foster, demitir parte da diretoria da empresa. Três diretores ligados a três partidos foram defenestrados. Um deles era Paulo Roberto Costa, responsável pelo Abastecimento. No PT, as demissões caíram mal. Sobretudo a de Renato Duque, da diretoria de Serviços e Engenharia, responsável por grandes encomendas de plataformas e sondas de perfuração. Petista da corrente Construindo um Novo Brasil, tendência interna mais poderosa do partido, Duque fora indicado pelo ex-ministro José Dirceu. É bom guardar esse nome.
Ainda convalescente do tratamento contra o câncer e mergulhado na campanha de Fernando Haddad à prefeitura paulistana, Lula assistia de longe ao movimento. Quando vinham lhe falar mal do governo, costumava responder com uma frase pronta: “Calma, ela vai mudar. Aquela cadeira muda as pessoas.”

O Instituto Lula ocupa um sobrado de três andares no bairro do Ipiranga, na Zona Sul de São Paulo. Decorado com móveis de escritório em ferro, divisórias de fórmica e chão acarpetado, lembra as instalações de um sindicato. É lá que Lula despacha desde que deixou a Presidência. O local virou também o ponto de romaria de empresários e políticos para se queixar de Dilma. Logo, ganhou o apelido de “Serpentário do Ipiranga”. Ali, dizem, as víboras destilam veneno puro contra o Planalto.
Numa manhã de agosto, um dos dirigentes do Instituto falava sobre o governo e as eleições vindouras. Segundo ele, Dilma enfrentava uma combinação de fatores preocupante: a crise internacional, o ressentimento da elite – que se viu dividindo aeroportos e tendo de pagar hora extra para a empregada doméstica – e a dificuldade de vender o próprio governo. “Gastaram meses querendo emplacar a gerentona e a faxineira. Isso pegou muito bem para a elite, mas não quer dizer nada para o povão”, comentou.
Em sua avaliação, o que ganha votos são ações sociais – Dilma as tinha, mas não conseguia mostrar. Para provar o que disse, ele citou pesquisas internas do partido evidenciando que os eleitores atribuíam a Lula programas implementados por Dilma.
Nas hostes petistas, Dilma sempre foi vista como forasteira. Com passado de esquerda, fez sua trajetória no Partido Democrático Trabalhista, nas fileiras caudilhistas de Leonel Brizola. Por muito tempo – e ainda hoje –, os petistas fazem questão de lembrar: Brizola foi aquele que se referia a Lula como “o sapo barbudo”. Petistas mais mordazes comentam que ela herdou tudo do brizolismo, menos a qualidade: a coragem de enfrentar a TV Globo.
No mandato de Dilma, os petistas imaginavam pôr em prática a regulamentação dos meios de comunicação, defendida com ardor pelo partido. Mas ela não chegou nem perto do assunto. Na sua gestão, ocorreu uma mudança significativa na distribuição de verbas publicitárias para a imprensa. No segundo mandato de Lula, o então ministro da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins, irrigou pequenos jornais, rádios e blogueiros. Com Dilma, esses veículos perderam dinheiro e influência.
Cobrada pelo PT, ela também ficava presa à necessidade de justificar o que não havia feito. Havia uma pressão enorme para que fosse a público defender os réus do partido no caso do mensalão. Nem Lula o fez. Os petistas se sentiam sem uma cúmplice. E Lula, às vezes, idem. Quando estourou o caso Rosemary Noronha – funcionária da Presidência em São Paulo, apontada como “amiga íntima” de Lula e acusada de tráfico de influência –, Dilma nem titubeou. “Ela mandou demitir na hora, não quis nem saber”, contou uma ex-assessora da presidente.
A todo tempo, os petistas trazem à tona que Dilma nunca pensou, desejou, quis ou se preparou para ser presidente da República. Repetem que ela se comportava como alguém independente, que não havia entendido que na verdade era apenas parte de um projeto político mais amplo. “Ela foi eleita para um projeto político. Não é dela, nem do Lula, é de todos. Ela nunca será a candidata dela mesma”, disse-me o dirigente do Instituto Lula. “O que vai ser julgado nas urnas são doze anos, não quatro”, concluiu.
No final de 2012, as queixas dos empresários, a revolta dos parlamentares que se sentiam desprestigiados e sobretudo o baixo crescimento (0,9%) deram fim ao clima de lua de mel. Na imprensa, a presidente era criticada pelo fracasso das medidas para impulsionar a economia e prometia em troca um “pibão” para breve. O Brasil havia perdido a posição para a Inglaterra e voltado a ser a sétima economia do mundo. O governo tinha 62% de aprovação.

Pouco depois, a revista inglesa The Economist pediu a cabeça de Guido Mantega em extensa reportagem com críticas à condução da política econômica brasileira. O “pibinho” assustava investidores e empresários. Durante todo tempo, o governo acreditou que a queda da taxa de juros e o aumento do crédito dos bancos oficiais implicariam um enorme incentivo ao investimento privado – que entretanto não aumentou. Ocorreu o inverso. De seu lado, Dilma respondia com evasivas e mantinha o pé firme nas diretrizes. A dificuldade de admitir erros é uma de suas características mais notáveis.
Na mesma época, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e o do Rio, Eduardo Paes, estiveram no Planalto para tratar do aumento das tarifas de transporte público. Mantega teve uma ideia: já que a inflação continuava próxima de 6%, resistindo a voltar para o centro da meta (4,5%), era melhor segurar o reajuste. A resposta veio das ruas meses depois, quando o aumento foi enfim anunciado.
Em fevereiro, o “Volta, Lula” já havia se espalhado como gripe no inverno. Institutos de pesquisa simulavam o nome do ex-presidente nas apostas eleitorais – e ele ganhava com folga –, o petismo alimentava o boato e os empresários, insatisfeitos, engrossavam o coro. Dilma procurou Lula e pediu-lhe um gesto capaz de aplacar a boataria. Dias depois, durante a comemoração do aniversário do PT, Lula fez seu papel: antes de encerrar sua fala, como se cumprisse uma tarefa, finalmente mencionou a reeleição de Dilma. O resultado foi dúbio. Parte da legenda achou que era um erro antecipar a campanha, já que ainda havia quase dois anos de governo pela frente. Outros entenderam ter sido uma maneira de fortalecer o projeto de poder num momento delicado. A verdadeira opinião de Lula ficou restrita a amigos e familiares. “Lula é igual à Bíblia, cada um interpreta como quer”, disse José Eduardo Dutra, ex-presidente do PT e atual diretor da Petrobras.
Na casa do próprio Lula, o anúncio da reeleição de Dilma repercutiu mal. A ex-primeira-dama Marisa Letícia achou um absurdo, uma ingratidão, uma traição que Dilma não tivesse perguntado a Lula, em nenhum momento, se ele queria ser candidato – conforme a presidente havia confidenciado para um ex-ministro, amigo de ambos, um ano antes. A família ficou magoada. E especialmente Lula.
Desde que deixara o Alvorada, Marisa Letícia sentia falta da rotina brasiliense – as manhãs pescando no píer da Presidência, o entourage, os salamaleques, o poder. Dizia que Lula ainda era a única pessoa capaz de manter o país nos trilhos. Fazia coro com o Serpentário do Ipiranga. “Ele sempre quis voltar, a Marisa queria que ele voltasse, os filhos queriam e boa parte do PT também”, disse-me um advogado de renome ligado ao partido, em seu escritório, em São Paulo.
De sua parte, Dilma defendia que o mandato era dela. Deveria terminar o que havia começado e, como seus antecessores, tinha o direito à reeleição. Nada disso, no entanto, era explicitado. Em público, Lula negava a hipótese de se candidatar, mas no privado era sempre ambíguo. Ainda que não estimulasse o boato, não movia uma palha para matá-lo na origem. Em encontros reservados, ele passou a criticar a presidente.
Durante todo o mandato, Dilma e Lula nunca se afastaram ou deixaram de se falar. Ele sempre foi cuidadoso na aproximação e nas críticas. Dava sugestões de modo que sua interlocutora pudesse acatá-las ou não. Em vez de dizer que ela estava negligenciando a política externa, Lula perguntava, como do nada: “E a África, Dilminha? Está abandonada...” Quando se estranhavam, um ou outro “sumia”. Como relatou um auxiliar direto da presidente: “Mito não telefona. Ele nunca telefonou, mas ele sumia. E ela, quando achava que ele estava dando declarações demais à imprensa, ou se julgava estar no caminho certo e queria preservar-se de ingerências externas, fazia o mesmo.”

O comitê central da campanha de Dilma Rousseff está localizado em um centro comercial de Brasília. Na entrada, veem-se cartazes de crianças com camisetas vermelhas, a serigrafia de uma foto da candidata quando militava contra a ditadura e um enorme painel com a imagem dela, sorridente, ao lado de Lula. No mezanino, fica a sala de Giles Azevedo, ex-chefe de gabinete da presidente no Planalto, hoje um dos coordenadores da campanha.
Há vinte anos, ele é a sombra de Dilma Rousseff, que o chama carinhosamente de “Gil e Les” – como se ele fosse duas pessoas. Se há no mundo alguém em quem ela confie, é ele. Em uma tarde de julho – quando ainda não havia Marina Silva no páreo –, Azevedo comentava as dificuldades da chefe: “As pessoas não querem resolver problema, querem carinho, atenção. Ela quer resolver, não quer gastar tempo com firula.” Segundo ele, a praticidade e a discrição da presidente eram uma novidade no cargo. “Ela trabalha para dentro. Não quer holofote, quer resultado, isso é uma coisa diferente na política brasileira.”
Para ele, é um grande equívoco afirmar que Dilma não sabe fazer política. “Baixar os juros do sistema financeiro mexendo com lucros de banqueiros, desafiar interesses econômicos nos contratos de energia elétrica, criar a Comissão da Verdade, isso é não fazer política?”, indagou. “Ela fez isso sozinha.”
O celular tocou. Passaram-lhe o resultado de uma pesquisa recente, mas ele não quis comentar os números. Com voz mansa, pôs-se a listar as conquistas do governo: o Minha Casa Minha Vida havia construído 2 milhões de moradias; o Brasil Carinhoso retirara 8,7 milhões de pessoas da miséria; das dez maiores hidrelétricas do mundo, três seriam construídas no Brasil; o Pronatec ofereceu cursos técnicos a 8 milhões de estudantes. “Na crise, o mundo perdeu 60 milhões de empregos, e o Brasil ganhou 11 milhões. Como que alguém pode dizer que esse governo fracassou?”
Naqueles dias, a dicotomia entre o Ipiranga e o Planalto era explícita. Os mais próximos da presidente se incomodavam com o fato de Lula despontar como um gênio da lâmpada, sempre com uma frase de efeito, uma solução mágica, um conselho incrível, ainda que o PT amargasse derrotas fragorosas em dois dos principais estados brasileiros: Lindberg Farias, no Rio, e Alexandre Padilha, em São Paulo. A eterna comparação entre ela e Lula também a incomodava. Ela sorria amarelo quando ele falava em público sobre “o criador e a criatura” ou quando explicitava que o governo era “meu e da Dilma”, ratificando ataques de adversários. Ela também percebia que o “Volta, Lula” aparecia sempre nos momentos em que o governo estava fragilizado, quase como um corretivo a sua gestão. E quem está a seu lado repara que Dilma se refere a Lula como “presidente” e o trata de “senhor”, enquanto ele, a despeito do cargo que ela ocupa, sempre se refere à presidente como “Dilminha” e “você”. Entre os dois, a relação nunca foi de paridade. Quando o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, visitou o Brasil, no ano passado, engatou numa conversa animada com Lula. Deixaram Dilma, a presidente, esperando por quarenta minutos.
Mas era fato que, depois de quase quatro anos de mandato, ela ainda precisava umbilicalmente de Lula para se eleger. “É difícil suceder o Lula. O carisma, o processo de transferência, é um peso muito grande”, afirmou Giles Azevedo. Segundo ele, qualquer candidato do partido estaria na mesma situação. A relação de ambos, ele disse, para aplacar qualquer boato de desentendimento, era excelente. “Mas ela pensa, né?”

O prejuízo de se ter antecipado a campanha eleitoral logo ficou visível. O governo passou a ser avaliado com lupa, cada ação de Dilma ficou sob suspeição de ser eleitoreira. Quando o preço do tomate chegou a 10 reais o quilo – um aumento de 80% em menos de um ano –, a opinião pública gritou: a inflação está mordendo a dona de casa.
No Congresso, a relação com o Executivo também ia mal. Nos primeiros dois anos, Dilma havia feito algo se mover no pântano do fisiologismo brasiliense. “Acabou a conversinha mole, tangenciada, uma coisa querendo dizer outra, segundas intenções. Com ela, não tem”, comentou um ministro do PMDB, durante um jantar em Brasília. Um ex-ministro paulista também me disse: “Ela é honesta, não pensa em dinheiro e não tem filho para fazer negócio. Isso já cria uma barreira para as conversas esquisitas.”
Pressionada por Lula, ela cedia nas alianças, mas até a última hora tentava uma carta diferente. Foi o caso da ida de Renan Calheiros para a presidência do Congresso Nacional. Ainda que o PT tivesse combinado, por escrito, o revezamento com o outro partido, quando a posse se aproximou, ela insinuou que Calheiros desistisse do cargo em troca do apoio incondicional do governo para elegê-lo governador de Alagoas. Ele agradeceu. “Ela ia com o milho e eles voltavam com a pipoca. Ela não entendia o quão mais fundo era o buraco”, comentou uma ex-auxiliar da presidente.
O estilo Dilma tinha um preço. Uma coisa era ser faxineira quando estava por cima, outra era manter a pose sendo bombardeada de todos os lados. “Deputado dá troco. É um horror, mas é fato”, comentou um parlamentar da base aliada, em Brasília. A retaliação vinha do próprio quintal. Numa ocasião, o então presidente da Câmara, o petista Marco Maia, queria indicar um afilhado político para o Banco do Brasil. Dilma não o atendeu. Em represália, ele abandonou uma sessão no meio para atrapalhar a votação.
No Congresso, Dilma perdeu em várias votações relevantes para o governo. Com uma articulação política frágil, sem vocação para fazer o jogo da arraia-miúda, ela ficou à mercê do fisiologismo. “No segundo e terceiro anos de governo, como estava sem anteparo, ela se expôs muito”, comentou o deputado Paulo Teixeira, do PT de São Paulo, em seu gabinete na Câmara, em agosto. Um dos exemplos ocorreu durante a votação da Lei dos Portos, quando o deputado Eduardo Cunha, líder do PMDB na Câmara, emparedou o governo. “A presidente ficou em simetria com um deputado. Isso não pode. Na Fazenda, a mesma coisa. Ela foi virando o alvo direto das críticas por não ter esse muro de defesa”, comentou. Ao longo do tempo, o pragmatismo ganhou. Dilma liberou o aumento dos ministérios para acomodar aliados, ministros faxinados indicaram sucessores, e ela trocou um ministro por causa de um minuto a mais no programa eleitoral na tevê. A imagem de faxineira ficara para trás.

Vieram as manifestações de junho de 2013. Começaram contra o aumento das passagens de ônibus, mas logo ganharam dimensão nacional e se transformaram em revolta contra os gastos com a Copa, a precariedade dos serviços públicos, a venalidade da política brasileira. Em vinte dias, a aprovação do governo Dilma despencou de 57% para 30%. O grito de independência não tinha mais eco. No meio da crise, foi ela quem pegou um avião para São Paulo para se encontrar com Lula. O poste precisava de luz.
Foi quando Lula sugeriu a saída de Guido Mantega. Mais uma vez, ela se fez de surda. “A maior força de Mantega durante todo o governo foi ter sido vulnerável. Poucos naquele cargo permitiram tamanha ingerência do presidente da República”, comentou um ex-integrante da equipe econômica. Para ela, demiti-lo significava perder o poder irrestrito de mandar na economia. Nessa época, Lula comentou com um grupo no Ipiranga: “Ela não vai mudar.” E viajou para uma longa série de compromissos na África. Mais uma vez, ela entendeu o recado.
Paradoxalmente, depois de junho, teve início o período mais profícuo do governo Dilma. Em poucos dias, os protestos fizeram o Congresso aprovar projetos contra a corrupção, governos recuaram no reajuste do transporte público e o Judiciário mandou para a cadeia um político acusado de corrupção – o deputado Natan Donadon, do PMDB de Roraima. O Planalto emplacou o Mais Médicos e conseguiu aprovar no Congresso a lei para destinar à educação o dinheiro dos royalties do petróleo.
As manifestações também provocaram uma reação inédita na presidente: ela mudou de ideia. Quando não apareceu nenhum interessado no leilão pela concessão de um trecho da rodovia BR-262, que liga o Espírito Santo a Minas Gerais, ela flexibilizou as regras do jogo e só aí as negociações deslancharam. Ao mesmo tempo, Dilma passou a se encontrar com os movimentos sociais, lideranças indígenas, representantes de igrejas evangélicas. Reuniu-se até com o presidente da Central Única das Favelas, o Preto Zezé. Recebeu parlamentares, ministros, empresários. Também ficou assídua no Twitter, em sintonia direta com os eleitores. “Ali, deu uma revigorada em todo mundo. As coisas andavam, aconteciam”, disse-me um ministro do governo, no final de setembro.
 Na imprensa, ela era atacada sem dó: as obras para a Copa não ficariam prontas, os protestos paralisariam o país, a imagem do Brasil no exterior seria abalada – em suma, o desastre era iminente. Dois meses depois das manifestações de junho, o governo era aprovado por 44% da população. A presidente tinha coisas a resolver e se trancou no Planalto novamente. Em pouco tempo, a rotina voltou ao normal: reuniões infindáveis, encontros secretos, broncas. A gerentona estava de volta.

A reforma ministerial, no início de 2014, produziu o primeiro homem forte do governo: Aloizio Mercadante, alçado para a Casa Civil depois que Gleisi Hoffmann se desincompatibilizou para concorrer ao governo do Paraná. Ao longo do mandato, os interlocutores de Dilma eram Ideli, Gleisi, Giles Azevedo, Fernando Pimentel e José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça. Quando substituiu Fernando Haddad na Educação, Mercadante foi galgando espaço no grupo.
Ainda ministro da Educação, passou a acompanhar a presidente nas viagens internacionais, mesmo que o assunto não dissesse respeito à sua pasta. Aproveitava os longos voos para palpitar sobre o governo em geral. Diz-se dele ser “o maior especialista no ministério dos outros”. A demissão de Antonio Patriota, do Ministério das Relações Exteriores, foi gestada entre os fios do hirsuto bigode. Comenta-se de um jantar em que Mercadante trocou a identificação dos lugares à mesa para se sentar perto de Dilma.
Ele desabrochou aos olhos da presidente durante as revoltas de junho. Nas reuniões no Alvorada para debater as providências diante da crise, Mercadante tinha sempre uma opinião aguerrida, era assertivo, não titubeava – o que, para Dilma, é uma virtude. Entregava resultados num governo que tinha pouco a mostrar e teve importante papel na elaboração do Mais Médicos e do Pronatec – duas vitrines do governo. Logo, mais um apelido foi cunhado nos corredores do Planalto. Mercadante se tornara “O Príncipe”.
Quadro histórico do PT, ele sempre teve uma relação conturbada com Lula e a ala paulista do partido. É considerado vaidoso, arrogante, megalômano. No governo Lula, jamais teve um ministério. Mas, na ausência de nomes de peso do partido – José Dirceu, José Genoino, Antonio Palocci –, era ele a melhor opção caseira para auxiliar a presidente. Quando se tornou um dos poucos a ter coragem de enfrentá-la, seu passe dobrou.
Há quem enxergue na parceria uma declaração de independência em relação a Lula. Foi o que disse um ministro do governo durante um café da manhã, no final de agosto. “A impressão é que ela e Mercadante sequestraram nosso projeto e agora acham que podem melhorá-lo”, afirmou. Com agenda política própria, Mercadante tem planos altos. Quando comentei com Rui Falcão ter ouvido que ele estava convencido de ser o sucessor de Dilma, o presidente do PT riu. “Cada um pode sonhar com o que quiser”, disse. Era inegável que a presença de Mercadante dera mais confiança à presidente. Ela não estava mais sozinha.

Em maio deste ano, as pesquisas apontavam para a perspectiva de haver segundo turno nas eleições presidenciais. A reação do governo veio a reboque: aumentou o valor do Bolsa Família e anunciou a correção na tabela do Imposto de Renda.
Dilma teve de lidar com as críticas e adversidades. Na abertura da Copa, fora vaiada e insultada em coro pela torcida presente ao Itaquerão. Sua popularidade despencara e o padrinho a deixara sozinha. “Ela não passa recibo, não deixa a emoção tomar conta”, disse um ministro do governo. É mesmo uma búlgara. Na lapela, nos bordados, no crepe, nos botões trabalhados, nas cores, nos modos, no paladar, mas, sobretudo, na maneira de externar emoções. “É como se ela tivesse uma missão. Você não vai vê-la se lamentando por aí. É uma causa, é uma missão”, observou. Nem quando fala do assunto que lhe é mais doloroso – a tortura –, ela o faz em tom de lamúria. O relato, reservado a poucos, é contado com detalhes estarrecedores. Um dos episódios mais degradantes envolveu um rato vivo.
Fora dos campos, a Copa do Mundo transcorreu melhor do que se esperava. Infraestrutura, segurança, telecomunicações, tratamento aos turistas, às seleções e aos chefes de Estado – em geral, não houve problemas. Os poucos foram acobertados pela simpatia da hospitalidade.
Logo depois do campeonato, o governo convocou uma entrevista coletiva com a presença de todos os ministros para falar do sucesso do evento. Mas já no dia seguinte Rui Falcão disse à imprensa que era hora de “reeleger Dilma e trazer Lula de volta em 2018”. A presidente mal tivera tempo de colher os louros quando a luz do poste a ofuscou novamente. “Aquela fala era uma maneira de dar um horizonte à militância para a continuidade do projeto”, disse-me Falcão, dias depois.
Um pouco antes da Copa, o ex-presidente Lula esteve em Milão para visitar a sede da Pirelli. À noite, num jantar privado, fez uma breve explanação sobre o Brasil e a América Latina. Ali, para os cerca de vinte convidados, desancou a sucessora. Disse que ela não o “consulta para nada”, ressaltou sua inabilidade política e a dificuldade de tocar o governo.
Dois dos presentes relataram o ocorrido a um conhecido empresário brasileiro do ramo do comércio exterior. “Se ela depender dele para se eleger, coitada dela”, comentou um deles, segundo o empresário contou, em seu escritório, em São Paulo. A declaração na Itália foi apenas uma das várias feitas por Lula em reuniões fechadas. Recentemente, a um grupo de executivos de um grande banco de investimentos, com sede na avenida Faria Lima, na capital paulista, a cena se repetiu.

Desde março de 2011, uma auditoria interna da Petrobras investigava a venda da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos. O negócio custou 1,18 bilhão à Petrobras, quase 27 vezes mais do que o valor pelo qual a empresa americana havia sido vendida em 2005. Como presidente do Conselho de Administração da estatal, Dilma foi uma das pessoas que aprovou a transação. Quando engrossaram as suspeitas sobre o negócio, em março deste ano, Graça Foster preparou uma nota, limitando-se a dizer que o assunto era objeto de sindicância interna.
Dilma rechaçou a explicação e considerou a nota “ingênua”. Sentada em seu gabinete, batucou no computador, durante horas, outra resposta, sob o olhar de quatro assessores, entre eles o advogado-geral da União, Luis Inácio Adams. “É para sair assim”, ordenou. Em nenhum momento ela consultou Lula ou o PT. Na nova versão, ela indicava que a compra havia se baseado em “documentação falha” e “informações incompletas”.
A nota caiu como uma bomba de nêutron. Baseada nela, a oposição pediu a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito a fim de apurar as denúncias. Na opinião de um renomado advogado que trabalha para as empreiteiras envolvidas, Dilma “trouxe o assunto para o centro do palco”. A interlocutores, Lula propalava que ela havia dado “um tiro no pé” ao jogar dúvidas sobre o embasamento técnico e jurídico para a compra da refinaria. O assunto, apostavam os petistas, teria morrido por si só com a vaga explicação da Petrobras.
Pouco depois, o Tribunal de Contas da União entendeu que os membros do conselho – incluindo Dilma, o empresário Jorge Gerdau e Fábio Barbosa, presidente do Grupo Abril – nada tinham a ver com o assunto. Os suspeitos a serem julgados seriam ex-diretores da Petrobras, entre eles Paulo Roberto Costa – um dos presos na Operação Lava a Jato, da Polícia Federal, que apurava as denúncias – e o ex-presidente da empresa, José Sérgio Gabrielli. Ambos demitidos por Dilma dois anos antes.
Segundo a revista Veja, em troca da redução da pena e proteção à família, Costa teria revelado, num acordo de delação premiada, que havia repassado dinheiro da corrupção para políticos como os ex-governadores Sérgio Cabral (PMDB) e Eduardo Campos (PSB), a governadora peemedebista Roseana Sarney e seus colegas de partido Renan Calheiros e Edison Lobão, ministro das Minas e Energia.
Em uma noite de setembro, encontrei-me com um advogado de um dos réus da Operação Lava a Jato, em um bar do Leblon, no Rio. Preocupado com a repercussão da delação premiada, ele corroborou o que já havia dito o réu: “Se ele falar, não tem eleição.” Comentou que Costa “era um ser único na política brasileira” – pela primeira vez, um operador atuava nas duas frentes: na arrecadação de recursos de campanha e na distribuição para políticos. “Na época do PC Farias, ele só arrecadava, não sabia para quem ia o quê. Esse Paulinho sabe tudo”, afirmou.
O caso ganhava contornos ainda mais preocupantes porque, por causa da nova Lei Anticorrupção – sancionada por Dilma Rousseff –, atualmente são os controladores das empresas que respondem pelos crimes, não mais um diretor ou um secretário. “Você imagina o que é ter o dono de uma empreiteira realmente correndo o risco de ir para a cadeia?”, observou o advogado.
O que moveu Dilma ainda é controverso. Havia a informação de que o relator do caso no TCU, o ministro José Jorge, ampliaria as investigações para o governo. “O que ela fez foi se defender, com razão. O que ela acha que é defesa própria, o PT chamou de ‘falta de solidariedade’”, disse-me um ministro palaciano. O curto-circuito era da luz, não do poste.

Da janela da sala da presidente da Petrobras, Maria das Graças Foster, tem-se uma visão magnífica da Baía de Guanabara. Em uma manhã de julho, sentada de costas para o cenário, ela falava sobre a chefe e amiga Dilma Rousseff. As duas se conheceram em reuniões de trabalho na Petrobras há dezoito anos. Quando vai a Brasília, Graça é uma das poucas a ser convidada a pernoitar no Alvorada. Lá, passam a noite conversando, ouvindo música e lendo.
Encontramo-nos quase dois meses antes do acordo de delação premiada feito por Paulo Roberto da Costa. Comentei que gostaria de ouvir uma “voz amiga” da presidente, pois me surpreendia como seus assessores e interlocutores mais próximos reservavam a Dilma críticas tão ácidas e comentários tão ferinos. “É injusto com ela, muito injusto”, disse Foster logo no começo da conversa. “E isso acontece porque ela é justa e paga um preço alto por isso”, avaliou.
No final de setembro, com mais uma queda brusca das ações, a Petrobras havia deixado de ser a maior empresa brasileira e perdera 144 bilhões de reais de valor de mercado desde o início do governo de Dilma Rousseff. Perguntei o que ela pensava ao ouvir que a presidente havia “acabado com a Petrobras e destruído o setor elétrico”. “Conheço essa empresa como a palma da minha mão, não tem isso”, disse, enfatizando a negativa com um movimento da cabeça. “Como uma empresa que investe 100 bilhões de reais por ano, tem 70 bilhões em caixa e produz 500 mil barris de petróleo por dia, só no pré-sal, pode estar mal?”, perguntou.
Chegamos a Pasadena. Relatei a ela o que havia ouvido de cinco pessoas ligadas ao PT, com palavras a mais ou a menos, mas sempre com o mesmo sentido: a presidente havia exposto o esquema que ela sabia ter financiado sua campanha e a de vários companheiros do PT e de partidos aliados. Sem hesitar, Graça respondeu, grave: “Não sei nada disso do que você está falando.”
Um copeiro trouxe café. Ela retomou o raciocínio. Acredita que Dilma é vítima da própria honestidade. “Ela é justa, honesta, muito justa e honesta. Esse é o ponto fundamental de tudo”, disse. Era de se imaginar que ela ficasse doída com as críticas inclementes. “Não é fácil para ninguém. Olha, eu vou até parar de falar porque eu já chorei aqui hoje. Mas, pode ficar tranquila, não foi por causa da Petrobras”, disse, sorrindo.

A trágica morte de Eduardo Campos varreu como um furacão o cenário eleitoral. A partir de então, tudo o que se especulava ficou velho. Em Brasília, passou-se a ouvir a expressão: “Ah, isso é tão 12 de agosto!”, em referência à véspera do desastre. O PT havia se preparado para repetir o mote “Nós contra eles”, no embate com o PSDB. Quando Marina Silva se tornou uma ameaça real, o partido não sabia o que fazer. De novo o “Volta, Lula” surgiu forte dentro do PT.
Naqueles dias, um influente empresário, com negócios no Sudeste e Nordeste, foi recebido para jantar na casa da família Lula em São Bernardo do Campo. Como era domingo, pediram pizza pelo telefone e se reuniram em volta da mesa. O assunto logo resvalou para o governo. Ele, que estava decepcionado com o PT, externou sua opinião. Foi a deixa para Marisa desancar Dilma mais uma vez: ingrata, falsa e traidora foram alguns dos adjetivos que empregou. Os filhos de Lula corroboravam a opinião da mãe. O ex-presidente permaneceu calado.
Ali, o empresário teve uma epifania. Percebeu que, por mais forte que fosse o “Volta, Lula”, o ex-presidente jamais teria coragem de se apresentar como candidato. Nem para salvar a eleição de 2014, já que ele já tinha em vista 2018. O preço de deixar de ser um mito e desembarcar na vida real, num cenário de incerteza aguda, era pesado demais. Logo que Marina se lançou candidata, as pesquisas encomendadas pelos partidos não davam grande vantagem a Lula sobre sua ex-ministra, quando confrontados na mesma cédula.
Com o alerta vermelho na campanha de Dilma, Lula passou a viajar pelo país fazendo comícios e acompanhando a candidata em eventos. Quatro ministros se licenciaram dos cargos para cuidar da articulação política. A 32 dias do primeiro turno, um grupo se reuniu na suíte do hotel Unique, em São Paulo, onde Dilma estava hospedada. Lula deu a ordem de comando: “Vai ser o segundo turno mais longo da história. Ele tem que começar agora”, disse. Isso significava atacar Marina com todas as armas, para que ela chegasse ao segundo turno fragilizada.
A partir daí o tom da propaganda eleitoral engrossou: Marina foi comparada a Jânio Quadros e Fernando Collor de Mello. Em outro spot, dizia-se que, com a autonomia que ela pretende dar ao Banco Central, a comida vai sumir do prato das famílias, em benefício dos banqueiros, caracterizados na propaganda como vilões. No jargão publicitário, a ordem era “desconstruir” Marina: explorar suas incongruências, dubiedades, fragilidades, o túnel desconhecido que seria seu governo. A estratégia surtiu efeito. Em três semanas, Dilma abriu quinze pontos de vantagem sobre Marina, mas ainda não tinha o suficiente para vencer no primeiro turno.

A poucos dias das eleições, o Brasil havia saído do Mapa Mundial da Fome das Nações Unidas. Pela primeira vez em cinco anos, registrava-se retração da economia, que havia entrado em recessão técnica. Ao contrário do que pregava o governo, o país crescia menos do que seus pares na América Latina. A inflação recuava a passos lentos. Indagada se faria mudanças na equipe ministerial caso reeleita, Dilma respondeu de bate-pronto “Ano novo, equipe nova”, incorporando a seu repertório a expressão “novo, nova”, bordão da adversária Marina e sua “nova política”. O recado tinha alvo: Mantega estaria fora no próximo governo. Ele soube da notícia pela internet. “Ela só não esclareceu se também vai mudar. Se vai deixar de ministrar para começar a presidir”, disse um secretário do governo com status de ministro.
No final de setembro, durante um café da manhã no Rio, um importante dirigente do PT comentava o enredo eleitoral. “Ninguém ia imaginar a morte do Eduardo Campos, a crise econômica mundial, o sentimento que ia surgir das manifestações de junho. Mas todo mundo sabia da inabilidade da Dilma, da ojeriza pela política, desse temperamento”, resumiu.
A reeleição de Dilma ganhara fôlego. De nada adiantara mostrar as obras, os programas, as falas de Lula. A vantagem só foi recuperada quando o PT pegou em armas e passou a atacar sem piedade a adversária. As dificuldades do governo, segundo meu interlocutor, nunca foram de macroeconomia, mas de estilo. “Arrogância”, ele disse. Argumentei que, se eleita, ela poderia fazer um governo mais livre, sem se preocupar com Lula ou com o PT, já que provavelmente seria seu último cargo político na vida. Ele balançou a cabeça e deu um sorrisinho. Antes de se retirar, arriscou o porvir: “O fato é que, se ela ganhar, foi o PT que ajudou. E aí, no dia 1º de janeiro, o governo passa a funcionar no Ipiranga. Se perder, ela vai levar essa culpa para sempre. Infelizmente, isso é a política.”
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-97/anais-da-politica/a-afilhada-rebelde

Esse mundo já era - Bernardo Esteves

Edição 97 > _despedida > Outubro de 2014

Esse mundo já era

Como viver no Antropoceno
Bernardo Esteves




Numa sexta-feira de agosto, foram abertas as inscrições para Os Mil Nomes de Gaia, colóquio que reuniria no Rio de Janeiro pensadores de vários países que vêm refletindo sobre a mudança do clima e a crise ambiental global. Atraído pelas estrelas acadêmicas de primeira grandeza, o público esgotou em cerca de uma hora e meia os ingressos para cada um dos cinco dias de programação.
Realizado na terceira semana de setembro, na Casa de Rui Barbosa, em Botafogo, o evento também teve transmissão pela web. Foi concebido pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional da UFRJ, pela filósofa Déborah Danowski, da PUC do Rio, e pelo antropólogo francês Bruno Latour, do Instituto de Estudos Políticos de Paris, ou Sciences-Po.
Na semana do colóquio, a NOAA, agência federal americana que monitora os oceanos e a atmosfera, anunciou que a temperatura média da superfície do planeta registrada em agosto foi a mais alta para esse mês desde 1880, quando as medições começaram a ser feitas de modo sistemático. A continuar nesse ritmo, 2014 pode se tornar o ano mais quente já documentado, na contramão da suposta estagnação do aquecimento global alardeada pelos céticos do clima.
O aquecimento da Terra, a faceta mais falada da crise ambiental, integra um quadro de ameaças não menos perturbadoras, como a acidificação dos oceanos ou a perda acelerada da biodiversidade e da cobertura vegetal, todos eles processos interligados. A riqueza de detalhes com que a catástrofe vem sendo descrita contrasta com a inércia de governos, empresas e sociedades civis – um relatório divulgado em setembro mostrou que em 2013 as emissões de gases do efeito estufa aumentaram 2,3% em relação ao ano anterior.

No ano 2000, o biólogo americano Eugene Stoermer e o químico holandês Paul Crutzen, prêmio Nobel em 1995, propuseram que se alterasse a linha do tempo com que os cientistas medem os éons, épocas e períodos geológicos, de modo a refletir as transformações no planeta causadas pelas atividades do homem. Segundo eles, as marcas da ação humana continuarão visíveis por milênios, gravadas nas camadas geológicas da Terra. Paleontólogos de um futuro longínquo – ou mesmo de outra civilização, caso a nossa venha a ser dizimada – provavelmente saberão identificar a alteração brusca na composição da atmosfera e as demais mudanças ambientais que provocamos, por meio dos fósseis de incontáveis espécies extintas, rejeitos radioativos, toneladas de plástico e outros rastros da nossa passagem devastadora pelo globo.
A essa época em que nossa espécie se tornou uma força geológica, Stoermer e Crutzen sugeriram dar o nome Antropoceno. Numa aula recente, Viveiros de Castro explicou que o conceito marca um colapso de escalas – a história do planeta e a da espécie humana, antes nas mãos de disciplinas distintas, agora se confundem. “O capitalismo passa a ser um episódio da paleontologia.”
Desde que foi proposto, o termo Antropoceno vem sendo apropriado por especialistas de várias disciplinas. No entanto, a União Internacional de Ciências Geológicas, guardiã da escala do tempo, ainda não o adotou oficialmente. A ideia esteve na pauta do último congresso da entidade, em 2012, quando uma comissão discutiu se o sinal da presença humana nas camadas geológicas é forte e distinto o bastante para justificar a formalização de uma nova época. Discussão inconclusiva, decisão adiada para o congresso de 2016: até lá, continuamos vivendo no Holoceno, iniciado há 12 mil anos, ao final da última glaciação.
Não há consenso sobre quando teria começado o Antropoceno. Crutzen vê sua origem na invenção da máquina a vapor em 1784, marco da Revolução Industrial, mas há quem prefira situá-la no início da agricultura, na era dos grandes descobrimentos ou no início da era nuclear – cada recorte com suas implicações políticas. O nome da nova época também é motivo de discórdia. Ao atribuir a transformação planetária ao anthropos, o termo Antropoceno joga a culpa sobre toda a espécie, embora uns sejam mais responsáveis do que outros. O sociólogo Jason Moore propôs o nome Capitaloceno, enfatizando o modo de produção responsável pelas mudanças globais. “Essa opção focaliza as causas mais que as consequências, mas perde de vista o fato de que é possível sair do capitalismo, mas não do Antropoceno”, ponderou Viveiros de Castro. “Quando o capitalismo acabar, o planeta vai continuar registrando, por muito tempo, os efeitos da Revolução Industrial e da emissão de gás carbônico.”

Odia da palestra de Bruno Latour – o nome de maior projeção dentre os convidados do colóquio – foi o primeiro a ter as entradas esgotadas. Nascido na Borgonha há 67 anos, Latour se formou em filosofia e atuou como sociólogo e antropólogo das ciências. Nas últimas quatro décadas, tem proposto uma nova forma de enxergar a produção do conhecimento científico, rejeitando noções como o excepcionalismo humano ou o dualismo entre natureza e sociedade, e entre sujeito e objeto. Conquistou uma legião de seguidores em várias disciplinas, mas também alguns críticos. No ano passado, recebeu o prêmio Holberg, citado em seu currículo como “o equivalente mais próximo do Nobel para as humanidades e ciências sociais”. Criado em 2003 pelo governo norueguês, o prêmio já foi concedido a nomes como Jürgen Habermas e Manuel Castells.
Latour usa óculos de armação grossa e tem os cabelos pretos repartidos de lado, contrastando com o grisalho das fartas sobrancelhas e do cavanhaque. Durante um almoço na semana do evento, ele contou que seu interesse pela crise ecológica começou nos anos 90, quando orientou doutorados sobre controvérsias ambientais, fez um estudo para o Ministério do Meio Ambiente e escreveuPolíticas da Natureza. “Mas foi por volta de 2005 que passei a me interessar por Gaia, incorporando o termo como figura da atualidade.”
O químico James Lovelock se inspirou em Gaia – deusa mãe da mitologia grega que personifica a Terra – para batizar a hipótese que descreve o planeta como um sistema complexo autorregulável, com comportamento semelhante ao de um organismo vivo. Sua proposta, formulada nos anos 70, projetou a imagem de Gaia, que fez sucesso na cultura pop e entre alguns cientistas, mas nem todos compraram a ideia. Junto com outros colegas, Latour vem redefinindo o conceito em livros, artigos e conferências. Na abertura do colóquio, o francês alertou para o risco de um pensamento holístico que despreze a multiplicidade de Gaia. “Se a tratarmos como uma totalidade, ela será apenas uma possibilidade de recarregar as formas de modernismo que se esgotaram justamente por causa da crise ecológica.”
Em suas últimas publicações e conferências, Latour tem mostrado como a crise ambiental é marcada por um novo tipo de controvérsia, cuja resolução já não pode ser arbitrada pela ciência. “É fácil entender por que as pessoas não correm para depositar confiança nos resultados dos cientistas”, considerou o francês. “Eles anunciam fatos que estão tão bem estabelecidos quanto os fatos mais bem estabelecidos da história das ciências, mas pedem que você mude sua vida.”
Para Latour, a crise põe em xeque as distinções tradicionais entre fatos e valores, forjadas num mundo em que a ciência cuida dos objetos, e a política, dos sujeitos. Mas não há como fazer ciência desinteressada no mundo de Gaia. Latour notou que afirmar que a água ferve a 100 graus centígrados é uma coisa; constatar que a concentração atmosférica de gás carbônico chegou a 400 partes por milhão, como aconteceu em 2013, é outra bem distinta. “Nenhum climatologista pode ouvir essa frase e passar a outro tópico”, ele lembrou. “A constatação soa como uma sirene ensurdecedora.”
E, no caso dele próprio, a gravidade de suas reflexões não o impele à ação? “Sempre desconfiei dos intelectuais engajados”, respondeu Latour, que acredita ser mais útil fazendo o que faz – dando aula, mobilizando estudantes e propondo a discussão pública do tema. E, desde 2010, fazendo teatro, que lhe oferece um meio mais flexível para intervir no debate sobre a mudança climática. Seu projeto Gaïa Global Circus já deu origem a duas peças, uma das quais coescrita por ele próprio. Do Rio, o francês embarcou para Nova York, onde armaria o Circo de Gaia na semana em que a cidade recebeu a Cúpula do Clima da onu e a Marcha do Povo pelo Clima, a maior manifestação já feita em torno da causa, com 300 mil pessoas.
Latour condenou o desdém de alguns colegas pelo tema ambiental. “Na França e no Brasil, a questão continua a despertar um sorriso nos intelectuais que, uma vez que leram Foucault e Deleuze e foram vagamente de esquerda, pensam já ter feito seu trabalho para o resto da existência”, disse o francês. “Chamo a isso de quietismo ambiental. No fundo, creio que eles estejam mais próximos dos céticos.”

Aideia de reunir pensadores que refletem sobre a crise ambiental surgiu em 2012, na casa de Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski em Teresópolis, numa conversa com Bruno Latour e sua mulher, Chloé. O antropólogo brasileiro pretendia estimular um debate que ainda é tímido entre seus colegas. “No Brasil, é muito pequena a reflexão das ciências humanas e sociais sobre as mudanças climáticas”, disse. “Essa discussão está pegando fogo no mundo todo, mas a ficha não caiu aqui.”
Ao lado de Déborah, Viveiros de Castro tem tratado do tema em suas intervenções públicas, seja em conferências, seja nas redes sociais. Na semana do colóquio, lançaram Há Mundo por Vir? Ensaio Sobre os Medos e os Fins – um livro que Latour recomenda ler “como se toma uma ducha gelada”, para nos prepararmos para o pior.
Na abertura do colóquio, o antropólogo brasileiro lamentou que o tema do aquecimento global estivesse ausente da imprensa e da agenda eleitoral. Assinalou também uma coincidência irônica: na mesma semana, o Rio de Janeiro sediava outro evento internacional, a Rio Oil & Gas 2014, uma feira da indústria petrolífera que tinha entre os patrocinadores Petrobras, Shell, Total, Statoil, ExxonMobil e outros gigantes do setor que mais emite gases-estufa. O evento recebeu dezenas de milhares de participantes em seus quatro dias, inclusive o vice-presidente Michel Temer, em campanha para a reeleição. “É eloquente o fato de estarmos dividindo o espaço do Rio de Janeiro com os grandes responsáveis por boa parte da crise climática mundial”, disse Viveiros de Castro.
Em sua conferência, sublinhou a importância de o aquecimento global ser discutido pelas humanidades. “Sabemos muito bem o que está acontecendo e quem é o responsável, o que não sabemos é o que fazer e como, e isso está inteiramente fora das competências dos cientistas do clima”, disse. Viveiros de Castro ironizou a proposta que o biólogo americano Edward Wilson fizera semanas antes, de reservar metade do planeta para os organismos não humanos. “Ele não diz exatamente onde vai ficar essa metade, e nem em qual metade ficarão os Estados Unidos”, disse, arrancando risos. “É a típica ideia de jerico de um cientista natural americano. Por isso nós, cientistas antinaturais, precisamos entrar no jogo.”
O time escalado para o colóquio contou sobretudo com filósofos, historiadores e cientistas sociais, mas também incluiu pesquisadores das ciências naturais, como o físico Alexandre Costa, professor da Universidade Estadual do Ceará e editor do blog O que Você Faria Se Soubesse o que Eu Sei? Costa disse que não estava ali para dar boas notícias. Projetou slides que ilustravam o ritmo inaudito do aquecimento do sistema climático, o crescimento da forçante radiativa e o risco da emissão na atmosfera de uma quantidade assombrosa de metano estocada no permafrost ártico. “A besta climática está acordando”, resumiu.
Quando o microfone foi aberto ao público, uma senhora se disse bouleversée, em sintonia com o espírito algo francófilo que permeava o encontro. Sua ficha acabara de cair. “Estou extremamente chocada. Queria fazer uma pergunta ao Alexandre e a todos que detêm esse tipo de conhecimento: Você tem filhos? Como consegue dormir e ser feliz todos os dias?” Costa sacou da mala duas caixas de remédio e agitou-as no ar: “Como eu consigo levar adiante?”, perguntou à plateia. “Jogando dopado!”
Numa conversa no dia seguinte, o físico afirmou que gostaria de provocar reações como aquela em todo mundo. Mas, além da preocupação, ele deseja mobilização. “Uma década atrás precisávamos da esperança das pessoas; hoje queremos o desespero.”

Outro nome estrelado do colóquio foi a belga Isabelle Stengers, uma química convertida em filósofa da ciência que é autora ou coautora de mais de vinte livros e professora da Universidade Livre de Bruxelas desde 1997. Em 2009, lançou No Tempo das Catástrofes: Resistir à Barbárie que Vem Aí, uma reflexão sobre a crise ecológica sem edição em português. Propôs ali a imagem da “intrusão de Gaia” para caracterizar a irrupção irreversível do planeta no primeiro plano de nossas vidas, chamando a atenção dos colegas para o conceito de Lovelock.
Nascida em 1949, Stengers é uma senhora de olhar vivo e fala envolvente. Numa entrevista no último dia do colóquio, ela falou sobre a situação inédita com que se deparam as ciências naturais. “Os cientistas do clima precisam de apoio. Eles devem desconfiar de seus aliados tradicionais – as empresas e o Estado –, que podem se apropriar completamente do problema com consequências catastróficas.” Para a pensadora belga, o momento é de cooperação. “As ciências humanas podem lhes dar a imaginação que a sua formação não lhes deu sobre as consequências que não lhes são familiares”, afirmou. “Se eles puderem povoar sua imaginação, talvez fiquem menos vulneráveis.”
Escalada para a conferência de encerramento, Stengers fez um balanço das discussões travadas durante a semana. Em tom grave, observou que no futuro talvez sejamos confrontados por questionamentos similares aos dos jovens alemães nascidos no pós-guerra, quando descobriram os horrores do Holocausto: “Vocês sabiam, e o que fizeram?” Ela se disse hesitante entre o pesadelo e a vergonha. “Daqui a trinta ou quarenta anos seremos a geração mais odiada.”